Gustavo Gutiérrez: pai e símbolo da Teologia da Libertação

Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

No último dia 22 de outubro, a noite já ia avançada quando chegou a meu WhatsApp uma mensagem proveniente de San Diego, California. Victor Carmona, colega professor da Universidad de San Diego, anunciava a notícia da morte do sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez.

Com 96 anos e já de saúde muito frágil, Gustavo exalara seu último suspiro no convento dos dominicanos em Lima, ordem à qual pertencia. Já havendo sido anunciada uma vez e não sendo verdadeira a notícia tardou algum tempo para ser assimilada. Mas infelizmente desta vez era real. O brilhante teólogo que tanto marcou a Igreja da América Latina partira ao encontro do Pai.

As mensagens e homenagens começaram a aparecer. E em muito tempo não via uma unanimidade tão impressionante. Todos e todas que escreviam sobre o teólogo recém falecido eram pródigos em elogios e comentários favoráveis, reconhecendo seu imenso valor intelectual, sua fidelidade à Igreja, sua criatividade teológica, seu compromisso amoroso e inquebrantável com os pobres e pequenos. Mais: a unanimidade alcançava inclusive o ponto de admitir que Gustavo havia revolucionado a teologia latino-americana e mesmo universal, inserindo na mesma um novo ponto de vista e uma nova perspectiva: os pobres como lugar teológico a partir do qual se pensa toda a Revelação.

A teologia foi sua terceira carreira, tendo anteriormente estudado medicina e letras. Sua ordenação sacerdotal foi tardia, aos 31 anos, após haver estudado as duas graduações que influenciaram sem dúvida seus escritos, mas sobretudo seu agir pastoral na paróquia do distrito de Rimac em Lima, Peru. Conhecia profundamente a literatura peruana, latino-americana e europeia, tendo influído muito em sua obra teológica os escritos do escritor peruano José Maria Arguedas, do qual foi amigo e com quem manteve sempre uma relação íntima e fecunda.

A pergunta que gera a teologia de Gutiérrez se encontra na vida dos pobres e oprimidos, daqueles que não têm amanhã previsível e não sabem se poderão dar de comer a sua família e se poderão comer eles mesmos. Diante destes e destas o sacerdote e teólogo se perguntava: como dizer ao pobre que Deus o ama?

Devemos a este peruano a recepção fiel e criativa do Concílio Vaticano II, que já se percebe presente no documento de Medellín, assinado pelo episcopado do continente em 1968, com a presença do Papa Paulo VI. O livro programático de Gustavo data de 1971 e se chama “Teologia da Libertação. Perspectivas.” Tem como eixo central a necessidade da práxis, da ação libertadora que gera justiça, sendo a teologia uma reflexão sobre essa mesma práxis.

Em suas palavras: "Se dizemos que a fé é um compromisso com Deus e com os homens e afirmamos que a teologia é a inteligência da fé, devemos entender que a fé é uma inteligência desse compromisso... A teologia não é primeira, o primeiro é o compromisso; a teologia é uma inteligência do compromisso, o compromisso é ação... Teologia da libertação quer dizer: estabelecer a relação que existe entre a emancipação do homem – no social, político e econômico – e o Reino de Deus."

A teologia de Gutiérrez teve muitíssimos seguidores e se tornou uma verdadeira escola teológica, diferente da teologia europeia que até então reinava absoluta como única existente no cenário eclesial. A Teologia da Libertação que pretendia ser uma reflexão a partir dos pobres, e a eles devolvidas para que fossem artesãos de sua própria libertação teve adeptos em todo o continente, alguns ilustres como Leonardo Boff e Jon Sobrino. Passou a ser ensinada em cursos de teologia, seminários e faculdades e marcou indelevelmente o panorama eclesial latino-americano.

No final dos anos 80, quando da queda do muro de Berlim, a crise mundial atingiu também a teologia da Libertação. E seus teólogos foram convocados a dar explicações ao Vaticano sobre suas propostas. Gustavo estava entre eles. O Papa Francisco reconheceu o fato e a atitude do teólogo, que permaneceu fiel, sofrendo calado e procurando não aprofundar as divisões que apareciam.

Tive a graça de encontrar-me com ele muitas vezes. Em todas elas falamos sobre como a Teologia da Libertação administrava essa crise. Suas respostas sempre me encantaram. Em uma dessas ocasiões, quando lhe perguntaram em uma reunião se a Teologia da Libertação havia morrido, respondeu com o humor delicioso que o caracterizava: “Dizem que sou o pai da Teologia da Libertação. Se isso é verdade, ninguém me convidou ao enterro de minha filha. Creio que está mais viva do que nunca."

Em outra ocasião, arguido sobre se a opção pelos pobres ainda tinha sentido, respondeu com contundência: “Creio que sim, porque infelizmente a pobreza não acabou. Ao contrário, só fez aumentar. Além disso, a opção pelos pobres e a teologia que a respalda – a Teologia da Libertação – geraram mártires. E isso não pode ser tratado com ligeireza, mas ao contrário, exige um profundo respeito e obriga a pensar no assunto com seriedade."

Este homem pequeno de estatura, mas gigantesco por dentro deixou um legado imorredouro. Escreveu livros e artigos que até hoje seguem atuais e inspiradores para se compreender a realidade que é a nossa neste continente de contrastes dolorosos e polarizações mortíferas. Em boa parte, se deve a ele o fato de que a Igreja hoje seja liderada por alguém como o Papa Francisco, formado nessa escola que volta o olhar para os que estão sofrendo e através de suas lentes enxerga o amor de Deus. Que sua memória nos acompanhe e sua teologia continue sendo fundamento de nossa inteligência da fé que é chamada a ser antes de tudo uma inteligência do amor.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Teologia latin0-americana: raízes e ramos" (Vozes/Editora PUC-Rio, 2017)