Maré Vermelha. A vitória de Trump é a paz dos vencedores
O mundo acordou algo atônito nesta quarta-feira, seis de novembro. Não que a vitória eleitoral de Donald Trump tenha sido uma surpresa. Afinal, desde o início da corrida presidencial o bilionário nova-iorquino se mostrou absolutamente competitivo, em que pese os tiros e as condenações judiciais. Mas a vitória trumpista foi esmagadora e, por isso, surpreendente.
A vice-presidente, Kamala Harris, que pegou o bastão da candidatura democrata após a lavada de Trump sobre um alquebrado Joe Biden no primeiro debate presidencial, desempenhou bem o seu papel. Bonita e bem-formada, tendo uma carreira de sucesso tanto no Direito quanto na política, Harris não titubeou diante do enfurecido Donald Trump, defendendo uma pauta democrática que visava resgatar a ideia de uma América plural, diversa e inclusiva. Mas a vitória de Trump foi avassaladora.
O magnata venceu em praticamente todos os estados-chave, os chamados swing states, que tradicionalmente oscilam entre democratas e republicanos. Se as pesquisas apontavam um cenário de empate técnico, os mais de 290 delegados conquistados pelo empoderado republicano mostram que a realidade é muito maior do que supõe nossa vã Sociologia. Verborrágico, Trump bateu duro na política econômica de Biden, vociferou contra a perda relativa do poderio do país e martelou sem dó sobre um dos principais pontos de ruptura na sociedade americana: a questão migratória.
País formado por imigrantes europeus que cruzaram o Atlântico, há muito os EUA buscam deter a avalanche de latinos, asiáticos e africanos, que buscam na América o mesmo que os pioneiros do Mayflower: liberdade e fortuna. O imigrante não quer problemas, não quer rupturas. Ele deseja viver o American Way of Life, trocar trabalho por dólares, realizar o sonho americano. Mas esse sonho parece ter cor e religião bem definidos: ele é branco e cristão. Para os demais, resta o pesadelo da segregação sócio-espacial, da discriminação étnico-racial e da ilegalidade; custos que, é importante que se diga, os imigrantes ainda parecem dispostos a pagar.
A pauta migratória talvez seja um dos principais pontos de tensão política no mundo atual, nos EUA, na Europa ou mesmo no Brasil, onde bolivianos, haitianos e venezuelanos provam cotidianamente o modo tupiniquim de discriminar. Vinculando imigração e economia, Trump bateu duro nos imigrantes, chamados de “lixo” e “terroristas”. Ao responsabilizá-los pelas dificuldades econômicas do país, ao estigmatiza-los como “ladrões” que roubam o trabalho e a riqueza dos americanos, o bilionário capturou o voto dos ressentidos, o voto racialista, xenófobo e reacionário, dos que almejam uma nova era de ouro. Contundente, Trump não só avançou sobre redutos democratas como Virgínia e Novo México, mas, a partir dos subúrbios endinheirados, adentrou nas periferias, nos rincões da pobreza, entre os desempregados, fazendo terra arrasada da temperança política, vencendo inclusive entre mulheres e latinos.
Nos EUA, como no Ocidente, a riqueza está cada vez mais concentrada. Todavia, diferente da utopia socialista, as desigualdades contemporâneas já não alimentam uma luta de classes. Ao contrário! Na distopia neoliberal, os novos trabalhadores, a turma do corre, sem sindicatos e sem direitos, está plasmada na promessa de prosperidade vendida a preços nem sempre módicos por coaches e pastores. Nesta distopia individualista e egocêntrica, valores como racismo, xenofobia e misoginia legitimam narrativas coerentes com a imagem viril e carismática de Donald Trump. Orgulhoso de si, cheio de empáfia, o bilionário nova-iorquino é um mercador que vende uma América para os americanos, para os vencedores. Nesta América, não cabe a diversidade, não cabem negros, imigrantes e populações LGBTQIA+. Também não cabem indígenas, ambientalistas ou defensores das causas humanitárias.
Os ecos da vitória trumpista já se fazem sentir em várias latitudes, na Europa como no Brasil. Putin e Netanyahu esfregam as mãos de alegria. A maré vermelha de Trump desmantela as esperanças de um mundo multilaterista, de uma nova governança global. O mundo emoldurado por Trump e pela direita norte-americana é isolacionista, belicista, antiliberal e antidemocrático. A riqueza e a prosperidade prometida, deverão vir, por certo, mas somente para os ”eleitos”. A conquista de Trump celebra a paz dos vencedores, dos bem-sucedidos, dos “ungidos” pelo capital. Aos demais, restarão as migalhas do banquete; aos descontentes, as solas das botinas. Ainda veremos o que será a Grande América de Donald Trump.
Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Pesquisador do NuBRICS/UFF
Renata Medeiros de Araújo, Mestre em Ciência Política. Advogada