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Braga Netto é sintoma do golpismo latente nas Forças Armadas
Por RUBENS VALENTE
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Publicado em 17/12/2024 às 08:09
Alterado em 17/12/2024 às 08:12
Identificar e punir os militares responsáveis pelo plano de golpe de 2022 é obviamente necessário e bem-vindo. Mas será um grande risco para a democracia confiar no sistema policial-judicial como a única resposta possível para um problema político profundo.
É autoengano ficar reverberando a fabulação do ministro da Defesa, José Múcio. Segundo ele – vale lembrar, um político de direita que durante 13 anos militou na Arena, o partido que dava suporte aos descalabros da ditadura civil-militar –, trata-se apenas de uma questão relativa a pessoas, que ele chama de “CPFs”, e não à instituição Forças Armadas, o “CNPJ”.
O problema de seguir acreditando nesse argumento pedestre é fechar os olhos para os sinais que estão por toda parte, é deixar em banho-maria o golpismo latente entre os militares até que, um belo dia, uma nova operação “Punhal Verde e Amarelo” de fato se torne realidade. Aí já seria tarde demais.
Parece que não ocorre a Múcio que instituições são feitas por pessoas, aliás extremamente poderosas no caso investigado pela PF-STF, como generais, ex-ministros e um ex-comandante da Marinha. No Brasil de 2024, com todas as informações que temos à disposição, a ninguém mais é dada a irresponsabilidade de ser ingênuo. O buraco é bem mais embaixo.
Estudiosos do tema militar têm vindo a público alertar que muita coisa precisa ser alterada no ambiente das Forças Armadas para, se não conseguir extinguir, ao menos dirimir as aspirações golpistas. Autora de um livro sobre a formação de militares, a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ana Amélia Penido pontuou, em entrevista à Agência Brasil em novembro último, que a educação militar, incluindo seus currículos, deveria ser toda ela subordinada ao Ministério da Educação, o que não acontece hoje.
“No Brasil, a gente tem quatro sistemas de ensino. Um do Exército, um da Marinha, um da Aeronáutica e um civil. Somente este último é subordinado ao MEC. Essa autonomia foi garantida na Constituição Federal e referendada na Lei de Diretriz e Bases da Educação Nacional. Se não me engano, o [historiador] José Murilo de Carvalho usava a expressão ‘uma nação dentro da nação’ para enfatizar que os militares se organizam autonomamente.”
A diferenciação entre ensino civil e ensino militar dá margem a “um sentimento de superioridade entre os militares”, ou seja, à noção de que eles são “melhores do que os civis”. Esticando o raciocínio, eles se julgam mais capazes de conduzir os destinos do país, ainda que precisem, de vez em quando, dar um golpe de Estado chamado eufemisticamente de “intervenção”.
Exagero dos pesquisadores? Ora, basta assistir ao vídeo recentemente produzido e lançado pela Marinha que ridiculariza a vida dos brasileiros civis, mostrados em festas, bebedeiras e passeios em contraponto à suposta vida dura dos fardados. O vídeo é sobretudo uma elaborada fake news. Edita a realidade para compor uma narrativa falsa. Se o vídeo mostrasse uma trabalhadora pegando de madrugada um ônibus superlotado nas periferias das grandes cidades para labutar o dia todo em troca de um salário-mínimo, quem tem privilégios e quem não tem?
O descontrole do poder civil sobre a formação dos militares é tão grande que o Ministério Público Federal (MPF) recentemente teve que ir ao Judiciário para pedir que uma brigada do Exército em Juiz de Fora (MG) fosse obrigada a receber aulas sobre as violações aos direitos humanos cometidos pela ditadura civil-militar ao longo de 21 anos. A brigada, aliás, se chama “31 de Março”, em homenagem ao golpe que ela ajudou a consumar, com a sublevação dos seus soldados em 1964 por ordem do general Olímpio Mourão Filho (1900-1972).
Pois bem. Não deixa de ser espantoso que, em novembro último, a União, ou seja, o representante legal do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tenha afirmado ao Judiciário que não vai alterar o nome da brigada, que já existe disciplina de direitos humanos na grade curricular e que se opõe à criação de um “espaço de memória” no local, um outro pedido do MPF.
Esse pequeno exemplo mostra como o caminho que leva ao golpismo de um general Walter Braga Netto é longo e tortuoso, começa nas hostes militares, mas passa pelos governos civis que se apresentam como bem-intencionados.
Passa também pelo Judiciário e pelo STF. Agora em 2020, o então presidente do tribunal Dias Toffoli, que já chamou o golpe de 1964 de “movimento”, derrubou uma ordem judicial que determinava que o Ministério da Defesa de Bolsonaro tirasse do ar uma nota que chamava o golpe cinicamente de “um marco para a democracia brasileira”. Toffoli alegou “indevida invasão” do Judiciário no Executivo.
A recusa reiterada das Forças Armadas em revirar o seu passado de forma crítica também está nas raízes do golpismo. Como consequência, veio a confiança na impunidade que grassa desde o fim da ditadura. Vamos lembrar o caso do ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, nunca punido por participar de um ato político ao lado de Bolsonaro.
No final do mês passado, em seu podcast “Oi, gente”, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz lembrou que também “é preciso que os militares não sejam julgados só por militares”.
“Esse [inquérito da PF no STF] é um exemplo que as instituições brasileiras estão dando agora, quase no final de 2024. São as instituições republicanas que vão julgar esses contingentes militares. Eu não estou dizendo aqui que todos os militares estão envolvidos, não estão, como eu comecei dizendo, mas é impressionante a quantidade de militares que agem dessa maneira, que só pode ser considerada golpista.”
Também é necessário um esforço sistemático dos órgãos civis de fiscalização e controle da União contra a recusa dos militares em agir de forma positiva e moderna no tema da transparência pública.
Na hora de proteger suas atividades, é comum ver os órgãos militares lançando mão da carta da “soberania nacional”, argumento vago que pode ser utilizado em tudo que seja secreto. A banalização do segredo é um outro tipo de ataque à democracia.
Conforme recentemente pontuaram dois especialistas, Maria Vitória Ramos e Bruno Morassutti, cofundadores da Fiquem Sabendo, a opacidade institucional “fortalece a indisciplina e a percepção de que tudo é possível”.
“Todos os anos protocolamos pela Fiquem Sabendo milhares de pedidos de acesso à informação para todos os poderes e instâncias governamentais. Quando esses pedidos são direcionados às Forças e ao Ministério da Defesa, tudo fica mais difícil. Mais de 65% das nossas solicitações de informação para esses órgãos entre 2023 e 2024 foram negadas”, escreveram na Folha de S.Paulo.
Na Agência Pública muitas vezes enfrentamos o sigilo indiscriminado em órgãos comandados por militares. Um dos casos mais emblemáticos, aliás, envolveu o próprio Braga Netto. Após a rejeição, repetidas vezes, da liberação dos documentos, foi preciso que o governo Bolsonaro terminasse para enfim termos acesso às atas sigilosas de um comitê formado por 26 órgãos da União sobre assunto extensamente público, de notável interesse público, nada menos que a pandemia da covid-19.
O acesso aos papéis antes negado por Braga Netto deu origem a uma série de reportagens sobre documentos aos quais nem a CPI da Covid havia tido acesso. Em um dos textos, foi revelado que o general pessoalmente orientou os integrantes do comitê a não criar “pânico na população” sobre a mortalidade provocada pela covid-19, em linha com o negacionismo científico expressado em diversos discursos de Bolsonaro.
Os militares têm uma dificuldade extrema em lidar com a liberdade de jornalistas independentes críticos ao papel das Forças Armadas. Eles são hábeis na comunicação “em off” com jornalistas de sua confiança, mas extremamente refratários quando encontram perguntas incômodas. Em junho de 2022, este jornalista da Pública teve a tela do seu computador fotografada por um militar depois que fez perguntas indigestas a um comandante da região.
A Controladoria-Geral da União (CGU) deveria estar à frente desse amplo processo de abrir as janelas das Forças Armadas para a luz do sol. Contudo, muitas vezes o órgão capitula, concorda com argumentos frágeis e, nesse sentido, empodera ainda mais os militares que operam para obter menos transparência no que fazem.
Caso já clássico é o Batalhão das Forças Especiais, em Goiânia, que segue firme e forte na sua rotina toda enigmática, secreta e misteriosa. Na Alemanha, quando foi detectada uma radicalização de militares à direita, o governo mandou extinguir um comando inteiro de suas forças especiais.
No Brasil, as mudanças aqui pontuadas passariam, sobretudo, pelo comando do Ministério da Defesa. Contudo, a estratégia de José Múcio tem sido negar o espírito golpista em vez de enfrentá-lo até onde seja possível. O preço a ser pago por esse equívoco, vamos chamar assim, pode ser terrivelmente alto.
Não é um comportamento exclusivo de Múcio. Em conversas, nos últimos anos, com gente bem informada em Brasília, eu ficava surpreso com o tipo de negativa que aparecia: “o Exército não tem como dar um golpe”, “os EUA não autorizam um golpe”, “o Bolsonaro não consegue liderar um golpe”. Esses argumentos desconsideram um dado fundamental presente em vários golpes do passado: uma insurreição armada que começa pequena pode se espalhar como fogo no milharal, tornando-se incontrolável.
Em 2022, o país escapou, mas foi por um triz. As autoridades em tese responsáveis por frear o golpismo dentro das Forças Armadas podem viver esse perigo novamente: basta cruzar os braços, que cruzados já estão.
Rubens Valente é colunista da Agência Pública