ARTIGOS

Vidas Secas, nosso chão

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 22/12/2024 às 08:19

Alterado em 22/12/2024 às 08:19

Lembra do filme “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos?

Quem não lembra da cadela Baleia e seu olhar triste diante da morte prenunciada?

E quem não lembra do ranger do carro de boi, como música de fundo aterrorizante a nos indicar que adentrávamos um mundo moinho como Cartola, anos depois, nos escancarava diante de nossa inocência, nossa ingenuidade juvenil?

O que teria sido de nós que atravessamos os anos dourados e nos escondemos dos anos de chumbo sem a tábua de salvação que nos lançava a música de Chico? A voz de Maria Bethania em “Carcará” ou na balada triste do machismo em “Olhos nos Olhos”? Ou de Ellis Regina em “O bêbado e equilibrista” de Aldir Blanc e João Bosco?

E o Tom? o Vinicius? o Paulinho da Viola e sua Portela?

Nós, da Geração de 40 - com as devidas honras que sempre prestaremos a Noel Rosa - somos a geração privilegiada da música popular brasileira, que nos acompanhou a cada volta da vida com a batida de João Gilberto, a poesia de Caetano e Gil.

As letras de nossos músicos, a começar por “Cálice", nos fizeram rir da censura antes de nos liberar do medo cotidiano. Letras que se valiam do duplo sentido e da ironia para rasgar o véu da hipocrisia a nos aprisionar.

Sempre houve uma certa sapequice entre o músico brasileiro e o seu público. Uma sensualidade que carregamos no sangue que sabe muito bem a hora de se mostrar ou de se transformar num canto de dor a viajar mundo afora e a desafiar os maiores sabiás viventes e suas vozes, como tivemos a mostra inesquecível do encontro Tom-Sinatra.

E hoje nos surpreendemos, mas, não tanto, com o impacto que nos está trazendo este filme despretensioso, mas profundamente humano que nos trouxe a parceria Walter Salles - Marcello Rubens Paiva “Ainda Estou Aqui“.

Sabemos que é um filme que não apela nem para a música, nem para a beleza do Rio nem para a violência, a que teria todo direito de apelar.

E foi, com este cinema de uma “imagem só”, como dele se poderia dizer, que se revive hoje no Brasil a dor tantas vezes suprimida de velhos tempos negros.

Coincidência ou não, surge nas telas neste ano de 2024, ano-símbolo, ano-advertência de tantos males passados, mas não mortos.

Este ano de 2024, sem açúcar nem afeto, despejou em nossa memória o pior que vivemos por quase trinta anos e que pretendeu ressurgir das sombras, caiados de cal.

Não só aqui, mas no mundo dito ocidental, surgem espectros viscosos do nazismo de Hitler, do fascismo de Mussolini ou do nativismo integralista de Plinio Salgado, todos animados pelo denominador comum da violência e da supressão da liberdade.

A reeleição de Donald Trump talvez seja o coro wagneriano desta ópera fratricida, caminho de sangue e dor a que nos pretende conduzir.

E já estamos a ver a indústria bélica a se assanhar diante da vertigem dos lucros vertiginosos dos drones, dos mísseis e das inteligências artificiais a serviço da destruição.

Só os comprometidos com o Apocalipse - por razões religiosas atéias - ou por cegueira monetária galopante podem acreditar que Trump possa ser o novo Messias.

E quem disso nos adverte e desvela ainda que apenas tangido pela voracidade financeira é seu autoproclamado Moisés, de nome Musk, rei do contante, seja bitcoin ou dólar, inescrupuloso a ponto de envolver o Congresso Americano numa jogada digna de escroques na aprovação do orçamento daquela nação, antes por todos respeitada como guardiã da Democracia e da Dignidade.

Felizmente rejeitada até por membros do Partido Republicano, Trump já lança escaleres aos afogados ou simples retirantes do Titanic que comanda.

Mas, nada, absolutamente nada, poderá reconstituir o véu do templo rasgado pela espada da cobiça, única arma que Trump venera.

Impossível não ver que a trampa de Trump, acolitada por Musk e os sobre-endinheirados das “big-techs”, nada mais é que a tentativa de construir uma sociedade em que a associação do grande capital transnacional com o Estado hegemônico seja a nova versão de um sistema fraudador como o que Trump alega pretender destruir.

Aconselho portanto aos abutres de todas as penugens e rapinagens que dispam seus esclerosados discursos de defesa do degenerado e decrépito Consenso de Washington que voltou às televisões e jornais brasileiros das últimas semanas a fazer o dólar subir a 6,20 reais. Não Cola.

Não creio que 2025 será melhor. Dispenso-me portanto de desejar feliz Ano Novo aos que me leem. 2025 será o que fizermos dele, apesar das emendas ao orçamento inventadas como pedra de lei no Congresso.
Falam tanto em encurtar o tempo de mandato dos juízes do Supremo Tribunal Federal. Por que não reduzir o mandato de nossos deputados? Nos Estados Unidos são dois anos.

De qualquer modo, a hora de o Brasil retomar sua determinação de crescer sua economia e desta forma o bem-estar de sua população é agora.

Qualquer hora dessas, ouviremos Trump cantarolar “Meu Mundo Caiu”, sem o charme nem os olhos de Maísa.

E nós, por mais heroica que seja nossa música popular, temos que tomar cuidado para que a música de fundo do filme de nossa história não continue a ser o ranger triste e enervante do carro de bois de “Vidas Secas”.


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EM TEMPO: Entro em retiro espiritual até o dia 20 de janeiro.

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

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