O Natal e a novidade do Espírito
O Natal é uma festa controvertida. Em sua origem e autenticidade, é a celebração do nascimento de Jesus, filho de Maria no qual os cristãos reconhecem o Filho de Deus. É a festa da Encarnação, quando o divino entra no humano e o assume em tudo, inclusive na fragilidade em todos os seus aspectos.
Onde pois está a controvérsia? Parece-me que reside no fato de que se cria um frenesi em torno da festa, onde o que menos se pensa e se contempla é o mistério inaudito desse movimento divino assumindo nossa carne mortal. Pelo contrário, construímos um apanágio do vazio e da mortalidade, comprando freneticamente coisas das quais nem nós nem ninguém precisa. O Menino nascido de mulher fica de lado. Vai sendo substituído por árvores cada vez maiores e mais enfeitadas de bolas, estrelas, brilhos e faíscas.
A grande novidade do Natal só pode ser percebida com a atenção purificada pelo desejo amoroso. Por ser arquitetada e dada pelo Espírito de Deus, encontra-se numa série de milagres simples e que fazem parte do cotidiano tão humano que corre o risco de passar despercebido.
É o milagre de “No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia; Herodes, tetrarca da Galileia; seu irmão Filipe, tetrarca da Ituréia e Traconites; e Lisânias, tetrarca de Abilene; Anás e Caifás exerciam o sumo sacerdócio. Foi nesse ano que veio a palavra do Senhor a João, filho de Zacarias, no deserto. “ Deus sussurrou aos ouvidos do profeta João Batista em meio a todo aquele poder piramidal e rígido de um império que esmagava um povo em sua dignidade. E João ouviu e “ percorreu toda a região próxima ao Jordão, pregando um batismo de arrependimento para o perdão dos pecados.” Atraía seguidores por sua palavra acesa no deserto e era ensinado a distinguir entre todos os sons que chegavam aos seus ouvidos o sussurro de Deus. E por isso imediatamente vislumbrou aquele que era maior do que ele e que viria depois dele, do qual não era digno de desatar a correia das sandálias.
É o milagre de, em uma sociedade patriarcal, uma jovem quase menina de nome Maria, prometida em casamento a um homem justo chamado José, haver acreditado na maternidade impossível que lhe anunciava o mensageiro divino. E havê-la assumido plenamente, abrindo diante de si um futuro incerto e desconhecido. E como milagre atrai milagre, é o fato inaudito de José, israelita cumpridor da Lei e temente a Deus, não haver repudiado sua noiva como lhe ordenava a Lei mosaica. Milagre que o mesmo José, carpinteiro em Nazaré, antes de seguir a norma, resolvesse acreditar no anjo que lhe disse: “José, filho de David, não temas receber Maria como tua esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo.
E os milagres se sucedem. No estábulo onde o casal que ia se recensear para cumprir o mandato do rei Herodes nasceu um menino em meio ao cansaço e ao desamparo. E os pobres pastores que por ali andavam foram vê-lo porque o Espírito acendeu sua luz sobre o recém-nascido, apontando ser ele o sinal da libertação que o povo esperava. E os sábios do Oriente que seguiram a estrela para ver o Menino que lhes havia sido anunciado, ao perguntar como o encontrariam, ouviram as palavras carregadas de deslumbrante simplicidade: “Encontrareis um menino envolto em faixas deitado numa manjedoura”. Foram e o encontraram.
O menino cresceu em graça e sabedoria e levantou a voz no meio de seu povo. E suas palavras atraiam multidões assim como seus atos. Andava com pobres, pecadores, ladrões e prostituas proclamando que Deus queria a todos em sua mesa, comendo seu banquete. Anunciava que o Deus que ele chamava de Pai era antes de tudo misericórdia e amor e não excluía ninguém de sua salvação. Assim a adúltera não era apedrejada, mas tinha um futuro novo diante de si; a pecadora pública interrompia o banquete do fariseu e era justificada e seu comportamento elogiado; o publicano pecador e cobrador de impostos hospedava o mestre em sua casa e conhecia o sabor da salvação.
Na simplicidade do acolhimento e das relações humanas se dá o milagre maior que é a vida em plenitude acontecendo ali onde ela parecia impossível. Esse é o sentido e o segredo do Natal: o mistério maior que dá sentido a tudo que existe reside no ventre da mulher grávida que dá à luz um bebê em quem põe o nome de Jesus. Está por extensão em toda mulher que vive em seu corpo esse milagre. E em toda criança que nasce e sobrevive neste mundo violento, teimando em anunciar o milagre de que a vida é mais forte que a morte.
O barulho e a agitação de nossa sociedade não permitem que vejamos esse milagre. Ele não acontece só em dezembro, mas em todos os dias e minutos de nossa vida. Que essa celebração nos ensine a manter os ouvidos atentos para perceber e distinguir os sussurros da novidade do Espírito que nos aponta o caminho da esperança e da vida. O Natal se prolonga no Ano novo, pois traz a novidade maior que o Espírito continuará a descortinar diante de nós.
Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio