ARTIGOS
Augusto Sampaio: memória de um justo
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 05/01/2025 às 14:29
O Natal se anunciava para o dia seguinte e a PUC-Rio acordou com uma notícia triste, a mais dolorosa e a mais inesperada. Augusto Sampaio – professor que durante três décadas exerceu o cargo de vice-reitor comunitário da universidade – falecera durante a madrugada do dia 23 de dezembro após três paradas cardíacas. A comunidade acadêmica ainda se encontra em estado de choque, mesmo já havendo passado e feito seu luto no velório, enterro e missa de sétimo dia desse grande ser humano. Não se pode acreditar que o ano começa e não vai ser mais possível vê-lo e encontrá-lo no campus com sua presença sempre amiga, risonha e disponível.
O professor Augusto Sampaio formou-se em Economia no ano de 1967 e foi neste Departamento que iniciou sua trajetória como docente. Imediatamente seu talento para tratar com as pessoas, sua eficiência como gestor e administrador foram percebidos pelas autoridades da universidade. Posteriormente, uniu ao exercício da docência a liderança de vários importantes projetos e setores. Foi coordenador setorial de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais, vice decano e decano do mesmo Centro. Depois disso, foi diretor do Instituto de Administração e Gerência (IAG). Chegou então a ser vice-reitor para assuntos administrativos. Porém sua missão maior e pela qual senão todos pelo menos a maioria dos docentes e estudantes da PUC-Rio o conheceu e amou foi a que ele exerceu por mais de três décadas: vice-reitor para assuntos comunitários.
Nesse trabalho, Augusto pôde dar toda a sua medida, em termos de competência, eficiência, mas sobretudo unindo a essas habilidades um coração compassivo e atento, sempre disposto a perceber as necessidades dos mais pobres e vulneráveis que chegavam à universidade e não dispunham de recursos para aí estudar.
Todos esses e essas encontraram no vice-reitor e sua equipe um apoio constante e firme, uma atenção carinhosa e dedicada e sobretudo um coração capaz de vibrar com seus problemas e dificuldades e procurar solucioná-los da melhor forma possível. São numerosos os ex-alunos da PUC que ali chegaram vindos de bairros periféricos e longínquos da Zona Sul do Rio que reconhecem dever a ele o fato de haver podido estudar em uma universidade de excelência como é a PUC-Rio, reconhecida como a primeira universidade privada do Brasil.
Sua sensibilidade para com as dificuldades e obstáculos que encontravam e ainda encontram muitos jovens para fazer uma carreira na universidade da Gávea era incansável. E não se conformava em dar de ombros e dizer: lamento, mas é impossível. Não havia impossíveis para esse homem tão grande quanto modesto, tão ousado quanto humilde. Exercia seu importante cargo como serviço e não cessava de buscar abrir novas portas para uma universidade mais inclusiva e justa.
Não havia também limites para sua atuação. Entendia seu trabalho como indo além dos limites do campus, lá onde os estudantes – e também os colegas – dele necessitassem. Nos obscuros tempos da ditadura militar, foi até os quartéis e porões situados no Rio de Janeiro procurar por alunos e professores desaparecidos.
Lembro-me de um dia em que o encontrei e conversamos um momento. Ele se encontrava mobilizadíssimo, emocionado. Descobrira que uma estudante que morava em um bairro de periferia e era bolsista da PUC desmaiara por três vezes no banheiro. Augusto não sossegou enquanto não investigou a causa daquele mal-estar. E descobriu que era fome. A jovem saía de casa em jejum e a marmita que trazia continha apenas chuchu. Desmaiara de fraqueza. Augusto não descansou enquanto não conseguiu para ela, assim como para outros, um suporte alimentar na bandejão da universidade.
Foi pioneiro em várias lutas. Como por exemplo, o sistema de cotas que inclui pretos e afrodescendentes nos bancos da universidade. Defendeu sempre com unhas e dentes a entrada e permanência de estudantes negros e periféricos antes que o sistema de cotas começasse a funcionar oficialmente, com apoio do governo. Foi na verdade um precursor das cotas raciais, criando o pré-vestibular para negros e carentes. Isso possibilitou uma política de permanência e fixação na PUC-Rio, que deu oportunidades a jovens da Rocinha, Maré e muitas outras comunidades do Rio.
O professor e vice-reitor não era apenas um funcionário da PUC-Rio. Trata-se de alguém profundamente sintonizado com a inspiração maior da universidade. Homem de profunda fé, cristão convicto, vivia aberto a outros pensamentos e religiões, embora sempre fiel ao Evangelho no qual acreditava. Sabia que uma universidade confessional não pode contentar-se em oferecer a excelência acadêmica em seu mais alto grau, mas é chamada igualmente a viver e transmitir valores e princípios em coerência com a fé que lhe dá nome e que em comunhão com a razão, dá testemunho de que o Espírito sopra incessantemente sobre a argila, criando e recriando a vida verdadeira.
Este é o homem que nos deixou antes do Natal. Mas que na verdade jamais nos deixará. Sua marca está perpetuada em seu legado, em todos aqueles e aquelas que com ele conviveram, trabalharam, sentiram e sofreram, celebraram e cantaram. Unindo todos esses predicados a um perpétuo bom humor e alegria, Augusto foi um justo.
Existe uma antiga crença judaica de que cada geração tem 36 indivíduos justos vivos – santos (tzadikim) – e, por causa de seus méritos, o mundo continua a existir. O justo é a base da existência do mundo. E o Livro dos Provérbios afirma: “Quando o vento da tempestade passa, o ímpio não existe mais, mas o justo é um fundamento eterno”.
A tradição judaica sustenta que as identidades desses 36 justos são desconhecidas umas das outras e que, se um deles chegasse a uma realização de seu verdadeiro propósito, nunca o admitiria. Talvez Augusto fizesse assim, se alguém se pusesse a dele dizer palavras laudatórias. Por isso mesmo, todos os que o conhecemos afirmamos com toda certeza: tratava-se de um justo. E dele é preciso fazer memória agradecida.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Santidade: chamado à humanidade” (Paulinas, 2019)