ARTIGOS

Memórias póstumas dos passos perdidos

Por ADHEMAR BAHADIAN

Publicado em 26/01/2025 às 08:51

Alterado em 26/01/2025 às 08:51

Vivo, Machado de Assis certamente não escolheria nem a pena da galhofa nem a tinta da melancolia para descrever as memórias póstumas de nossos passos perdidos neste primeiro quarto do século, ainda sem nome, mas certamente muito distante do século das Luzes.

Se há constatação inescapável é a de que estamos mais para o século das trevas, que nossos antepassados já ultrapassaram e muito próximos das irracionalidades pretensiosas a revestir nosso cotidiano de um obsessivo discurso de gralhas.

Apenas uma semana no governo, Trump semeia os grãos da discórdia, da tristeza, da desumanidade com a empáfia retórica de um Buda sonolento com ácidos refluxos de ódio.

À tristeza devastadora da faixa de Gaza se juntam agora as patrulhas armadas diante do pranto inconsolável de imigrantes retirados à força de seus magros sonhos de pão e liberdade.

Animado, talvez por uma pulsão, que se Freud fosse vivo talvez denominasse de “Pulsão de Herodes”, Trump extirpa os nascituros da cidadania redentora e, finalmente, acende a primeira revolta de seu próprio povo contra o desrespeito ao preceito constitucional.

Outros conflitos virão, anunciados pelo desprezo granítico aos esforços da humanidade contra os desastres climáticos que compuseram a música de fundo da cerimônia da posse presidencial destruindo a fogo as mansões de Los Angeles e soterrando no gelo as vias e estradas de Washington DC.

Triste sinfonia para um narcisista tóxico a ter que fazer seu horrendo discurso inaugural na Rotunda do Capitólio a nos lembrar a todos universo afora a barbaridade dita patriótica do 6 de janeiro.

Não há como ainda não lembrar de Freud, quando, perguntado sobre o que achou da Rotunda, Trump tenha dito que se havia maravilhado com “a excelência acústica” da sala, o que não deixa de reconhecer que o bem ou o mal que ali ocorram chegam sempre aos ouvidos de todos nós. Para nosso aplauso. Para nosso repúdio.

Ainda não satisfeito com o desmonte dos melhores passos de seus antepassados, Trump anuncia com soberba a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde, como se a epidemia da covid não pudesse se repetir desta ou de outra forma, e mais do que nunca a pesquisa e o acesso a medicamentos fossem mais do que prioritários. Muito mais prioritários do que as travessuras de Musk no Espaço.

Trump se esmerou em poucas horas a pisotear sobre os passos de Roosevelt e Churchill na construção de um pós-guerra centrado no Direito Internacional. Os passos dos grandes estadistas dos pós-guerra foram perdidos na memória de Trump, que se assanha em expor o projeto regressivo-autoritário do MAGA, codinome "Nova-Diplomacia das canhoneiras" .

Não creio que os Estados Unidos da América, mergulhado no malévolo conúbio entre o pior do capitalismo e a mais mercantilista das visões políticas, darão apoio a esta aventura .

Não me parece compatível com a essência da liberdade e da Democracia americanas.

Trump tem dois anos para espargir sua insânia. Em 2026 haverá eleições para o Congresso americano e minha convicção é que o povo americano melhor equilibrará os tradicionais “ pesos e contra-pesos” do jogo diplomático. Pato manco hoje, pato assado em 2026.

Claro que muito dependerá da capacidade de reação da comunidade internacional e seu compromisso com os ideais democráticos que nos unem.

Parece-me, por muitas razões, dentre as quais nossa responsabilidade como país signatário original da Carta de São Francisco, a importância de nossa Diplomacia como defensora dos princípios consagrados nas Nações Unidas e seus órgãos subsidiários.

Nosso compromisso maior é com o Direito Internacional, a igualdade jurídica dos Estados , os Direitos Humanos internacionalmente reconhecidos e com uma ordem econômica internacional justa e equilibrada.
Temos muito trabalho pela frente, talvez igual ou maior do que tivemos a partir dos anos 60, quando um equívoco de visão política nos fez confundir diplomacia com subserviência.

 

XXXXXXXXXX. XXXXXXXXXXX . XXXXXXXXXX.

 

EM TEMPO
Com perdões por falar do meu clube, só o Itamaraty, depois de escolher um craque como Mauricio Lyrio para coordenar o G-20, nos apresenta Corrêa do Lago, outro maestro, para coordenar as negociações climáticas. E temos outros, fazendo linha de passe. Bela Instituição do Brasil.
2. “ Ainda estou aqui” não é um filme. É uma virada espetacular no cinema brasileiro, só comparável ao encontro de Tom-Jobim com Sinatra na música brasileira. Só que desta vez, o responsável se chama Walter Salles.
3. É humilhante e mesquinho extraditar imigrantes ilegais em voos internacionais acorrentados nas pernas e nas mãos . Seria bom levar para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. No mínimo.
Ponto para o governo brasileiro, que mostrou a diferença entre ser humano e boiada.

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