ARTIGOS

O rei na República

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Por AURÉLIO WANDER BASTOS e LIER PIRES FERREIRA

Publicado em 26/01/2025 às 11:29

Alterado em 26/01/2025 às 11:34

Entre 2018 e 2022, foi instituído no Brasil, de modo informal, um presidencialismo de novo tipo, parlamentarista - presidencialista, onde o primeiro-ministro é o presidente da Câmara dos Deputados e o Congresso executa grande parte do orçamento na forma de emendas parlamentares. De acordo com dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), desde 2020 a União já pagou ou empenhou cerca de R$ 35 bilhões, um valor exorbitante cuja destinação é incerta. Esse montante exclui outras repasses para o Legislativo, como o fundo partidário, cujo valor girou em torno de 5 bilhões somente em 2024.

Essa situação, cujas origens estão no segundo governo Dilma, quando o desgaste político que levou ao impedimento da presidente ampliou progressivamente a força do Congresso, foi consolidada na gestão Bolsonaro, instalando uma bomba-relógio que o atual governo não sabe como desmontar.

Um exemplo claro das dificuldades do atual governo ocorreu com o recente recuo quanto ao monitoramento do PIX.

A medida, correta do ponto de vista fiscal, visava a atualizar regras para o monitoramento de transações financeiras, para inibir fraudes e sonegação fiscal.

As novas regras fixavam um monitoramento de movimentações acima de R$5 mil para pessoas físicas e de R$15 mil para pessoas jurídicas, reproduzindo o que já ocorre, por exemplo, com os pagamentos que são feitos via cartão de crédito. Foi um caos!

A partir de postagens do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG), um dos ícones da nova direita no Brasil, uma onda de desinformação varreu as redes sociais, colocando o governo contra as cordas.

Fake News apontavam para a tributação das transações via PIX, que prejudicariam principalmente microempreendedores e pequenos comerciantes, como barraqueiros, pipoqueiros e motoristas de aplicativos.

Em meio à onda de insatisfação, Lula publicou um vídeo esclarecendo que as novas regras não representavam novos tributos.

Ninguém acreditou.

Sob uma avalanche de críticas, replicadas por parlamentares, influenciadores e outros atores vinculados ao bolsonarismo e à direita brasileira, o governo recuou, revogando publicamente a medida com uma declaração lacônica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do secretário da Receita Federal, Robson Barreirinhas. Em tempos de pós-verdade, a narrativa se impôs aos fatos.

O caso do monitoramento do PIX, principalmente por "fintechs", pois os bancos tradicionais já eram obrigados a prestar essas informações, mostra o custo da governabilidade.

Sem conseguir mobilizar a sociedade civil em torno de um projeto nacional e com um Congresso fisiológico e que lhe é avesso, Lula tem que negociar alianças frágeis, caso a caso, com grupos parlamentares de centro e centro-direita.

Nem mesmo o tradicional loteamento de ministérios e cargos públicos, outrora capaz de amalgamar forças políticas diversas e garantir a governabilidade, está funcionando. Ademais, posto sob a “espada de Dâmocles”, o presidente vive a eterna ameaça de um golpe parlamentar, como aquele que trouxe Temer ao poder.

Um dos aspectos mais perversos deste quadro é que os parlamentares, beneficiários únicos do garroteamento do Executivo, não desejam governar.

O parlamentarismo-presidencialista, ou parlamentarismo-orçamentário, permite ao Congresso controlar amplas parcelas do orçamento federal, mas não lhe traz os dessabores inerentes ao governo.

A denúncia-bomba de Nikolas Ferreira era um questionamento falacioso, político, de uma justa medida do governo, mas Nikolas é um deputado oposicionista, sem compromisso com a governabilidade.

Essa postura mostra a atual posição do Congresso em relação ao governo. É uma cômoda situação de autoridade sem responsabilidade, de bônus sem ônus.

Afinal, se o país for mal, a responsabilidade recairá exclusivamente nos ombros do Executivo.

Neste contexto, sob a batuta de Lira e Pacheco, bancadas ávidas por recursos públicos vendem caro a governabilidade, desfrutando com imensa liberdade as oportunidades do poder.

O Brasil vive uma “sinuca de bico”, mas há alternativas institucionais dentro da ordem democrática.

A sociedade precisa pressionar para que o Parlamento aprove uma Emenda Parlamentarista, nos moldes do que existe na Alemanha, Canadá e França, países de capitalismo maduro nos quais o controle dos congressistas sobre o orçamento e demais instrumentos de governo, inclusive as indicações de bancada para cargos nos ministérios e nas empresas públicas, corresponde à responsabilidade pelo bom desempenho do Executivo.

Não pode haver autoridade legítima sem a responsabilidade correspondente.

Todavia, para além da baixa adesão popular à causa parlamentarista, o Congresso Nacional procura preservar o presidencialismo de coalizão trazido pela Constituição Federal. Trata-se de uma manobra fora da história. Se a combinação de um sistema de representação proporcional com lista aberta, multipartidarismo e gestão presidencial funcionou relativamente bem até o primeiro mandato de Dilma, as crises posteriores, inclusive no que tange à polarização política expressa (mas não limitada) pelas figuras de Lula e Bolsonaro, deixou expostas fraturas que o sistema presidencialista parece incapaz de reparar.

O presidencialismo-parlamentarista hoje implantado deflui irresponsavelmente o poder político do Parlamento Federal, sem permitir um controle transparente do orçamento. Daí as atuais tensões entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, onde o ministro Flávio Dino tenta, a duras penas, estabelecer limites republicanos ao controle parlamentar sobre o orçamento e sobre o próprio governo.

O Brasil vive hoje uma situação anômala, na qual o presidente da república “reina”, mas não governa.
Em que pese as responsabilidades e atribuições conferidas pela própria Constituição, o poder de fato está nas mãos do Parlamento.

Lula, o presidente de plantão, virou um Rei na República. Tem o ônus da governabilidade, mas não dispõe do poder necessário para governar.

É imprescindível refundar o sistema de governo, preservando a Constituição Cidadã tão delicadamente tecida por homens da estatura política de Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral. A história nos mostra que o presidencialismo é incompatível com a instabilidade política. É necessário estabilizar a República para evitar uma nova aventura autoritária que vá além dos abalos já provocados pelo 08 de janeiro ou pelo “Punhal Verde e Amarelo”.

O país almeja por uma governança responsável, capaz de responder aos desafios que vivencia. Está claro que o sistema atual está em colapso, exigindo medidas institucionais saneadoras. Ameaças golpistas emergem diuturnamente: não dá mais para esperar.

 

Aurélio Wander Bastos. Doutor em Ciência Política. Professor titular emérito da UNIRIO.

Lier Pires Ferreira. PhD em Direito. Professor titular do CP2. Pesquisador do LEPDESP/UERJ

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