ARTIGOS

'Ainda estamos aqui'

Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 28/01/2025 às 12:04

Alterado em 29/01/2025 às 12:39

Há alguns dias, “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, tronou-se o primeiro filme brasileiro a receber três indicações para o Oscar, incluindo melhor filme e melhor atriz. É um feito e tanto para um drama universal, tão angustiante quanto necessário, que remete a uma questão sensível de direitos humanos.

Aclamado pelo público e pela crítica, o filme remonta ao momento em que o ex-deputado Rubens Paiva foi preso, torturado e morto nos porões da ditadura militar. O doloroso relicário da família Paiva tem seu foco na figura de Eunice, mulher do ex-deputado. Embora não seja um filme militante, a adaptação da obra homônima de Marcelo Rubens Paiva, chega no momento em que o Brasil vive uma estúpida polarização política, que se desdobra para todos os campos da vida, inclusive para as artes. Não por outro motivo, círculos bolsonarista boicotam o filme, reforçando seu senso de verdade.

Um dos principais artífices dessa polarização é Jair Bolsonaro. O capitão-presidente fez sua carreira política negando as atrocidades do regime e tecendo loas a personalidades de triste memória, como o coronel-torturador Brilhante Ustra, que, dentre outros, martirizou a ex-presidente Dilma Rousseff. Recém indiciado pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado, Bolsonaro já protagonizou um rosário de infâmias públicas, dentre as quais cuspir no busto de Rubens Paiva. O quê?

É isso mesmo! Relatos de Chico Paiva Avelino, neto de Rubens e Eunice, trazem à tona essa obscenidade, que teria acontecido em 2014, durante a cerimônia de inauguração do busto em homenagem ao ex-parlamentar, na Câmara dos Deputados. Avelino conta que, durante as homenagens a Rubens Paiva, morto em 1971, Bolsonaro e apoiadores teriam partido em direção à família, gritando que “Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”. Ao passar pelo busto, o então congressista cuspiu no homenageado, fazendo simbolicamente o mesmo com a família ali presente, com a história política brasileira e com o próprio Parlamento, do qual era parte.

“Ainda estou aqui” também é um libelo contra a violência política. Capaz de recordar com firme delicadeza os horrores da ditadura, merece ser assistido por todos os brasileiros, em particular pelos mais jovens, cuja memória afetiva não alcança os “anos de chumbo”, sendo frequentemente distorcida por influenciadores (sic!), políticos e outras “viúvas” do regime, que não se cansam de negar os fatos e aviltar a história.

Coincidentemente ou não, as três indicações para o Oscar vieram à tona precisamente no último dia 23/01, quando a Resolução nº 601 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que a certidão de óbito de Rubens Paiva fosse retificada, passando a registrar que o ex-deputado faleceu de morte “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”. Até então, a certidão de óbito obtida pela família em 1996, 25 anos após o assassinato de Paiva, não fazia qualquer menção à sua prisão arbitrária e à sua submissão aos horrores da tortura, o tendo somente como “desaparecido” político.

A referida resolução, cumpre destacar, também alcança todos os mortos e desaparecidos da ditadura, contribuindo para preservar a verdade histórica, nos termos propostos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ela também reforça a luta de tantos outros que, mesmo após o restabelecimento da democracia, em 1985, foram arbitrariamente mortos por razões políticas, como Marielle e Anderson.

A luta contra a ditadura, pela verdade, pela reparação às famílias, pela condenação dos culpados, deveria ser comum a todos os brasileiros. Ela deveria irmanar, sem sobressaltos, todas as forças políticas, à direita e à esquerda, civis e militares. Infelizmente, isso não ocorre. Para além da torpe polarização política, para além das inúmeras vítimas inocentes das forças de segurança do Estado, enfim, para além dos que ainda apoiam a barbárie, o fascismo, há muitas outras formas de negar a democracia. Uma delas está posta em marcha pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que se recusa a transformar a antiga sede do DOI-Codi em um centro de cultura e memória pela democracia.

A sede do antigo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), subordinado ao Exército, foi um palco privilegiado de torturas e mortes, de martírios e suplícios. Situado na Rua Tutóia, nº 921, em Paraíso, na Zona Sul paulistana, o prédio é hoje a furtiva sede de uma delegacia de polícia. Ex-militar, democraticamente eleito para o Palácio dos Bandeirantes e um dos principais nomes da direita-política para as eleições de 2026, Tarcísio teria tudo para apoiar a conversão do prédio, de triste memória, em um tributo à democracia. Mas hesita em fazê-lo. Por quê?

“Ainda estou aqui” tem inúmeros méritos artísticos. Mas não há dúvidas de que, para além do orgulho de ver o cinema brasileiro no topo, a película tem o condão de nos lembrar que os crimes cometidos e historicamente negados pelo Estado não podem ser esquecidos. Não adianta silenciar a Comissão da Verdade, anistiar os culpados, “tapar o sol com a peneira”: o Brasil não irá esquecer seus mortos e desaparecidos.

A ditadura militar, a violência política, a forma como o Estado entrava nas casas das famílias, sequestrava as pessoas na frente dos filhos, sem que as vítimas sequer soubessem do eram acusadas, não pode ser tolerada. Torturas e mortes não são estratégias políticas, são crimes. Agora, os horrores da ditadura estão escancarados pela arte, tão menosprezada e desacreditada em um passado recente. Pela democracia, há que se dizer não à anistia, seja aos golpistas de 31 de março de 1964, seja aos “militontos” de 08 de janeiro de 2023. Pela democracia, vale lutar. Pela democracia, “ainda estamos aqui”.

 

Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Pesquisador do NuBRICS/UF

Renata Medeiros de Araújo, Mestre em Ciências Políticas. Advogada

 

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