Valença e o manual de assassinar sonhos: a política de fechamento de escolas

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Por FELIPE DA SILVA DUQUE

Professor Felipe da Silva Duque, de Valença (RJ)

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Na primeira semana do ano de 2025 e de governo, centenas de mães, pais, responsáveis, alunos e profissionais da educação acordaram atônitos com a seguinte notícia: “Escolas serão fechadas!”. Sem qualquer pronunciamento oficial, descobriu-se que se tinha como alvo seis escolas do campo e uma da periferia da cidade. O fechamento desta última, localizada no bairro da Varginha, se reverteu imediatamente com a resposta da comunidade escolar e a pressão sobre o prefeito e secretária em reunião na unidade. O rodízio de falas da comunidade escolar se entranhava a indignação e a reivindicação do histórico daquela instituição localizada em um bairro abandonado pelo poder público por décadas e entregue à violência urbana. O discurso inicial e paradoxal dos governantes era de que “fecharia a escola por causa da violência”, uma fundamentação constrangedora desmontada com facilidade pelos moradores que, apesar de negligenciados de direitos, sabem o que são e como exigi-los, tendo uma vitória considerável ante ao reacionarismo mais limitado da representação administrativa.

Em relação às outras seis escolas, localizadas em territórios rurais da cidade de Valença (onde vivem dois terços da população), procurou-se florear a argumentação recorrendo a tecnocratas com alta escolarização, mas com baixa educação. Abordaram na sua limitada alegação o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), onde se justificaria o fechamento de algumas unidades a partir da demonização de turmas multisseriadas, afinal “esse modelo de organização da sala de aula seria um empecilho à aprendizagem” impedindo, consequentemente, de alcançar os índices previstos nas planilhas elaboradas pelos engravatados do ar condicionado que nunca pisaram numa sala de aula e enxergam a escola como uma empresa, sem função social, num profundo desconhecimento da função do Ideb, que deve servir como bússola para políticas públicas educacionais e não como castigo.

Mesmo que tais unidades citadas tenham um ou duas turmas multisseriadas, o ataque a esse modelo vai na contramão de estudos recentes de pesquisadores da educação, que investigaram com outro olhar a realidade das multisseriadas num país pós-pandêmico, onde a realidade expõe um país que ainda possui, segundo o último IBGE de 2022, 25,6 milhões de habitantes vivendo em áreas rurais. Ciente dessas realidades, tivemos no âmbito federal o avanço nos últimos anos de programas para as multisseriadas, localizadas, principalmente, em escolas rurais. Podemos citar o Programa Escola da Terra, Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo), o recente Programa de Acompanhamento e Formação Continuada para o Ensino Multisseriado no Processo de Alfabetização (Praema) aprovado em 2024, além da disponibilização de cadernos específicos para turmas multisseriadas ou livros especificados via o Programa Nacional do Livro Didático. Por fim, o atual governo federal acaba de lançar o Programa Mais Professores para o Brasil, uma iniciativa que visa ofertar uma bolsa de R$2.100 para docentes da rede básica lecionarem em escolas com pouca oferta de professores, em síntese, nas escolas rurais.

Face a esse cardápio de possibilidades norteados pela manutenção e incentivo ao funcionamento dessas escolas, o governo de Valença optou pela via urbanocêntrica e lucrativa (aos olhos dos empresários que administram tais medidas) de fechar as escolas. Para justificar essa atrocidade aos olhos da lei, inicialmente, duas escolas foram apresentadas ao tal “diálogo” com a comunidade escolar: a Alcides de Souza, no bairro da Passagem, e Telsino Pereira Souza, no bairro do Paraíso. Numa decisão truculenta, com Guardas Municipais e Policiais Militares, comunicou-se a decisão: “A escola está fechada”, mesmo com oposição das comunidades escolares e o desrespeito à legislação que versa sobre democracia escolar, como o Art. 206 da Constituição Federal, o Artigo 3º da Lei no 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), o Artigo 53 da Lei no 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Meta 19 do Plano Nacional de Educação vigente (Lei no. 13.005/2014).

Apesar de ainda não contatadas, as comunidades escolares das outras unidades como a Escola Municipal Pedro Carlos e Escola Municipal Geral Fonseca, no distrito de Conservatória, a Escola Municipal Leite Souza, em Santa Isabel, e a Escola Municipal em Quirino seguem apreensivas e comungam da desgraça de estarem localizadas no segundo maior município em extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro, território historicamente erguido com o suor de seres humanos escravizados no século XIX em fazendas de café, e que dois séculos depois ainda conserva a mesma estrutura coronelista de poder num Brasil que é regido por uma Constituição Cidadã, ao menos, no papel.

O horror à democracia imputa ao governo o desprezo à escuta das mães (a maioria, mãe solo) que imploram pelo reconhecimento de suas realidades com jornada tripla e amedrontadas com a nova realidade violenta que se aproxima, onde seus filhos, ainda na infância, serão empurrados a uma nova rotina de até duas horas de ônibus, em estradas de terra, para territórios desconhecidos e distantes de sua progenitora, aquela que é acionada para participação ativa da vida escolar e se exige presença em casos de situações adversas de seus filhos, indo ao desencontro, inclusive, ao que prevê o Artigo 53 do ECA e o acesso à escola pública e gratuita próxima da residência do educando.

O distanciamento desse aluno de sua comunidade vincula-se a outro elemento presente no fechamento dessas escolas: a memória. O historiador Jacques Le Goff alertava para a coesão social proporcionada pela memória e construção da identidade, algo elementar nas dezenas de depoimentos de ex-alunos, pais de alunos, profissionais da educação e alunos atuais acerca dessas escolas. Produtores rurais, artesãs, cientistas, diplomatas, engenheiros, jornalistas, mecânicos, enfim, uma diversidade de gerações, de escolas com mais de 50 anos, que constituíram um patrimônio para a comunidade em conexão direta à sua harmonia coletiva. O desprezo a essas memórias é a face mais perversa de toda a história contada até aqui, trata-se do aniquilamento de registros e lembranças.

As comunidades escolares seguem resistindo organizadamente à tentativa desumanizadora e falida das políticas educacionais empresariais para a educação adotadas no município de Valença. O falso progresso trazido por essas teorias mecanicistas e autoritárias culmina naquilo que o filósofo Walter Benjamin alertou, a criação de ruínas, pois cada vitória dos ditos “civilizados” é a vitória da opressão e o esquecimento de quem foi derrotado, afinal, fechar escolas é assassinar sonhos, por isso as escolas ficam!

Felipe da Silva Duque. Coordenador Geral do Sindicato dos Profissionais da Educação - Núcleo Valença. Professor da Rede Municipal de Valença. Doutor em Educação