ARTIGOS
Tristes tempos, Mr. Trump
Por ADHEMAR BAHADIAN
agbahadian@gmail.com
Publicado em 16/03/2025 às 08:57
Alterado em 16/03/2025 às 08:57
A cada dia, Trump me enfastia. Não o temo, mas reconheço sua periculosidade. Ao vê-lo, ainda que apenas pela tela da televisão, tenho o impulso quase incontrolável de levantar-me, virar-lhe as costas, deixá-lo falar ao vento tantas insânias, delirantes, abusivas.
Aqui entre nós, Trump perdeu a graça. Seu circo, com os trapezistas trapalhões, Vance, Musk et caterva, nos proporciona, a cada hora de todo santo dia, um espetáculo chocho, sem graça, sem sal, sem sol, sempre turvado por nuvens aziagas de um apocalipse a vir.
Outro dia, andando por este Rio de Janeiro ladeado de escarpas luminosas, morros de nomes amorosos como “Dois Irmãos”, “Mesa do Imperador”, “Corcovado”, "Pão de Açúcar", "Estrada da Pedra Bonita”, "Alto da Boa Vista” me surpreendi pensando como a vida seria mais serena sem este vírus a nos assustar com cataclismas, terremotos e sobretudo com mentiras deslavadas.
Porque nele a mentira é o traço de cada dia. Não invejo meus colegas no Itamaraty que estão a dar tratos à bola para encontrar fórmulas engenhosas para conter o dique de ignorância a descer morro abaixo.
Trump acredita, como todo narcisista, que o mundo é seu espelho diante do qual se deve pavonear como se nos estivesse a abrir as portas da percepção.
Aqui entre nós e que ninguém nos ouça, Trump, com a vaca, está levando os Estados Unidos para o brejo. Até Musk - logo ele, o homem que se apoderou do poder com 30 moedas - pediu soda e produziu uma carta anônima ao “governo" americano para mendigar “sobriedade” na aplicação de tarifas alfandegárias.
Recebeu de Trump o óbulo devido: o magnânimo comprou ostensivamente um Tesla para levar para a Flórida. Claro, muitos megatrouxas seguirão o mestre na tentativa de recompor as finanças do homem mais rico do Mundo.
Pausa para gargalhar.
Enquanto isto, sai pela culatra, mundo afora, o sonho dourado dos partidos políticos afins às ideias radicais de Trump e Orban. A extrema direita fenece. Sua identidade de propósitos com o Trumpismo foi a pá de cal na ilusão de que o autoritarismo seja a resposta política adequada para nossos tempos. Combinada com a já mais do que assustadora perseguição à liberdade de expressão, à pesquisa científica e à autonomia das Universidades, a proposta de Trump se desqualifica e, pior ainda, desqualifica seus seguidores.
A nova coligação política na Alemanha isola os direitistas extremados e forma um governo de centro-direita com a participação inclusive dos “verdes”.
Desafiada a defender a Europa de Mozart, Hegel e Freud, a Alemanha abandona a política do garrote orçamentário e anuncia a aquisição de bilhões de euros em material militar, a sinalizar a importância de manter a Ucrânia sob proteção da Europa.
Os Estados Unidos perderam sua credibilidade como parceiro confiável e se tornaram um emprestador sovina, cínico a jogar estrume sobre os propósitos da Carta Atlântica e da Carta das Nações Unidas.
Ao desequilibrar ainda mais o instável equilíbrio do Direito Internacional, em especial o princípio do ‘Pacta sunt servanda”, sem o qual a lei do brutamontes impera, os Estados Unidos parecem ter, como se dizia na reportagem policial, ateado fogo às vestes.
Não é por exagero que um revista conservadora como o “The Economist” chamou de “mafiosa" a política externa americana impulsionada por Trump.
Renasce o militarismo alemão? Em artigo publicado em 2022, o cientista político José Fiori, cantou esta pedra.
O artigo está nas plataformas e vale a leitura.
Enquanto isto, os CEOs das grandes indústrias americanas, à exceção da corriola das big-techs, correm para a Casa Branca a pedir moderação à guerra das tarifas alfandegárias.
Aliás, para não dizer que não falei de flores, uma das maiores trampas de Trump é esta conversa de que o mundo, Brasil entre tantos, aplica tarifas desvantajosas a produtos americanos.
Qualquer noviço em regras do comércio internacional destruiria com um peteleco esta interpretação.
Tarifas sempre obedeceram a regras que fizeram do GATT o mais importante instrumento de regulação do comercio internacional.
Com o advento da OMC, patrocinada com entusiasmo pelos Estados Unidos da América, as negociações comerciais tornaram as reduções tarifárias um instrumento menos privilegiado.
No lugar das trocas tarifárias surgiram os chamados “novos temas” do comércio internacional dentre os quais “servicos“ , propriedade industrial, regras de investimento, inclusive a livre participação de empresas estrangeiras nas concorrências de obras públicas num território nacional.
Matérias e temas que compõem os acordos feitos na OMC com grande interesse para os países desenvolvidos.
Importante lembrar que frequentemente para conseguir a redução suada de um ponto ou até meio ponto na tarifa de um produto agrícola exportado pelo Brasil tivemos que aceitar regras leoninas na área de propriedade industrial, principalmente no que se relaciona com a proteção monopolista das patentes farmacêuticas no país.
Quando Trump vem com esta história de taxar o aço e alumínio brasileiros, deveríamos pelo menos reduzir - e é possível - nossas compras de insumos e produtos farmacêuticos dos Estados Unidos e aumentar nossas compras da Europa. Da Alemanha, por exemplo. Ou da Suíça. Ou da Holanda. Melhor ainda: da China e da Índia. A Farmácia Popular ficaria mais recheada.
Sei que esta minha ideia será rejeitada por muitos de meus colegas que suspiram enlevados pelas regras da OMC e que preferirão mergulhar de cabeça no Lago Leman, em Genebra.
Enquanto isto, só para lembrar, crianças morrem de sarampo nos Estados Unidos. O negativista Kennedy é contra a vacina. Agora, me diga, seu doutor, com que roupa eu vou? E por que esta fascinação com o Trumpismo? Que tal falarmos da liberdade de expressão? Sobre a destruição das Universidades americanas. Boa hora para o Brasil - alô, alô BNDES - fazer um programa de atração de nossos cientistas brasileiros que foram para os Estados Unidos e agora, provavelmente, estão sendo maltratados ou desempregados.
Finalizo com uma constatação que me perseguiu e me fez parecer um inimigo dos Estados Unidos, coisa que nunca fui. Sou apenas um aposentado que muito me orgulho de não ter caído em conversa para boi dormir. Sempre achei e continuo achando que nossa prioridade é a defesa de um nacionalismo saudável, como o que agora se impõe.
Comércio internacional à Trump é a negação descarada de tudo que os Estados Unidos da América apregoou na OMC.
Lamento. RIP. God Bless.
XXXXX. XXXXX XXXX
EM TEMPO: Falem mal do Sarney, mas sexta-feira passada, na GloboNews, no Programa ”Em Pauta", ele mostrou o vigor intelectual de um conservador político dos anos 50 do século vinte. Memória invejável, em sua idade. Queiramos ou não, o decano da política brasileira, com seus defeitos e virtudes. Com o presidente Alfonsin, derrubou o mito da rivalidade Brasil-Argentina, certamente o mais importante movimento diplomático brasileiro no século 20. Que hoje, Javier Milei, com uma ajudazinha de tresloucados brasileiros, pretende destruir.
2. E por dever de justiça, recordo aqui a feliz indicação, feita por Sarney, de Abreu Sodré, quatrocentão lacerdista, para Chanceler do Brasil. Falem de suas eventuais distrações no ritual diplomático, mas Sodré foi o único Chanceler brasileiro a quem o então todo poderoso Chanceler russo atravessou meio salão na sede das Nações Unidas em Nova Yorque para cumprimentar afetuosamente seu contraparte. Meninos, eu vi. Foi um Chanceler querido no Itamaraty. Além de ter um humor a toda prova. Uma vez, quando soube que o Chanceler que o visitaria se chamava Porras e Porras, virou-se para mim e perguntou: "por que duas vezes?"
3. E, para terminar, conto uma história sobre sua admiração e amizade pela diplomacia brasileira. Certo dia, já no governo Fernando Henrique, Luiz Felipe Lampreia, Chanceler e meu amigo de vários anos, me confidenciou que estava em palpos de aranha para encontrar um local digno e discreto para fazer uma reunião secreta da cúpula diplomática brasileiro-argentina, sem que a imprensa dela soubesse e, ainda por cima, num fim de semana. Levei o caso a Sodré, já aposentado, e ele me respondeu imediatamente. “Minha fazenda está à disposição. Marquem o fim de semana que quiserem”. A fazenda de Sodré, em Avaré, no interior de São Paulo tinha como sede uma autêntica casa colonial inglesa na qual a então Rainha Elizabeth, quando de sua visita ao Brasil, nela se hospedou a convite do então governador do Estado, Abreu Sodré. Vejam de que estou falando… Enfim, arranjos feitos, numa manhã de sábado aportam em Avaré cerca de vinte argentinos liderados pelo Chanceler. Lampreia veio com mais uns tantos brasileiros. Sodré ofereceu seus aposentos privados para o Chanceler brasileiro e se retirou para passar a noite num anexo da fazenda, originalmente destinado a pessoal da colheita do café. Sodré, em respeito ao pedido de confidencialidade de Lampreia, manteve o mesmo quadro de serviçais que o atendiam e apenas Maria do Carmo, sua filha mais nova, veio de São Paulo e acabou, sem nenhuma pose, ajudando para valer. Tudo funcionou, como se diz na Suíça, “sur des roulettes”. Sodré, elegante anfitrião, ofereceu almoço de boas-vindas aos visitantes e em nenhum momento valeu-se de sua condição de ex-Chanceler, amigo de Alfonsin, para sequer procurar saber o motivo da reunião. Não compareceu a reuniões privadas que se estenderam inclusive pela noite de sábado adentro. Lembro que ele e eu ficamos a fumar charuto numa modesta sala, cercada de fotografias de antigas safras de café. Domingo à tarde, já todos, argentinos e brasileiros, dentro do ônibus que nos levaria ao aeroporto de Avaré, Abreu Sodré, último a entrar, foi recebido com uma calorosa e longa sessão de aplausos. Agradeceu com um aceno carinhoso de seu chapéu Panamá.
Pagou de seu bolso todas as despesas. A imprensa não deu sinal que tivesse sabido da reunião. No fim da tarde, em sua mansão no Jardim Europa, Dona Maria, sua mulher e aguda conselheira, encerrou o papo; “Fizeste bem, Roberto".
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado