ARTIGOS

A volúpia insaciável do ler

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Por ADHEMAR BAHADIAN
agbahadian@gmail.com

Publicado em 23/03/2025 às 09:08

Alterado em 23/03/2025 às 09:17

...'uma livraria, principalmente uma que descubra quase por acaso, é capaz de me prender facilmente'... Foto: divulgação

Nada em minha infância traz ressonância maior do que o mágico momento em que li minha primeira frase.

Não lembro da idade de forma precisa. Recordo o impacto quase físico de ler não soletradas sílabas, mas uma frase forte, independente, dominante, senhora de seu espaço, consciente de seu sentido.

Talvez em meu cérebro estivesse ao mesmo tempo a desabrochar o beneplácito da dúvida. Logo me aguçou a aparente contradição entre a realidade lida e a realidade falada. A meu inquisidor olhar, a geladeira, branca como sempre, trazia agora uma estranha e curiosa denominação: “Universal”.

Ora, se é geladeira, como pode ser universal?

Minha tia-avó, professora primária aposentada, de nome Armia, hospedada em nossa casa, tornou-se meu primeiro dicionário, minha primeira filósofa. Me ensinou a diferença entre o geral e o particular. Quanta coisa num só dia. Quanta estrada num primeiro passo. Li jornais para ela, que se fazia de “vista cansada” para me aprimorar na compreensão de palavras “difíceis" como, “consequente”, “ademais”, “carestia”.

Empertigada e austera nos seus oitenta anos, me deu o primeiro livro “As aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain. Depois de Mark Twain - ou terá sido antes? - ganhei livros de Monteiro Lobato e conheci Emília, antecessora da argentina Mafalda. Aprendi muito com Monteiro Lobato e acho exagero atribuir a ele simpatia com o racismo. O ‘Poço do Visconde” me abriu os olhos para muitas dúvidas, até hoje não resolvidas.

“Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll me assombra. Faz alguns anos, o Embaixador Paulo Nogueira Batista, uma das inteligências mais fulgurantes que conheci, chamou-me a atenção para a importância de Alice e suas óbvias ressonâncias no cotidiano e no imaginário dos adultos. Ficamos a conversar sobre as insinuações psicanalíticas no livro. Aliás, Psicanálise e literatura são hoje o meu principal desafio e sobre isto falarei.

Devo a um tio, irmão mais novo de minha mãe, iniciar-me na estrada mais percorrida de minha vida: as livrarias. Ramiro me levou um dia à livraria São José, onde o maestro Carlos Ribeiro conhecia como ninguém os labirintos das estantes, o nome dos autores mais esquecidos e, sobretudo, gostava de sua profissão e fazia de sua livraria quase um templo.

Os panos verdes das mesas de pôquer, as roletas mágicas de Monte Carlo, tudo, que faz do passatempo um vício, passou por mim como uma brisa de verão. Mas, uma livraria, principalmente uma que descubra quase por acaso, é capaz de me prender facilmente. E não foram poucas as situações em que me vi delicadamente convidado a sair, último e incômodo freguês.

Na Suíça, onde vivi por cerca de seis anos de minha vida profissional, e onde tudo é mais pontual do que a própria gentileza, cansei de ouvir o pedido agastado dos livreiros: “Monsieur, on ferme. Merci de votre visite“. Insubordinado e rebelde freguês, apesar de quase sempre sair com dois ou três volumes comprados.

Mas, como estranhar um país em que trens partem às oito horas e dois minutos, chegam às quinze e dezoito, sem ironias nem atrasos?

Payot, minha livraria de preferência em Genebra, me seduziu com o título de um livro de John Le Carré, “Honourable Schoolboy”. Carré me enredou por anos com muitos outros admiráveis livros em que a espionagem, pelo menos para mim, era apenas o pano de fundo para uma atmosfera de competição humana desenfreada, onde o amor era mais traído do que traidor.

Com “Honourable Schooboy” tive pela segunda vez na vida o que chamo de imersão incontrolável na leitura, quando atravesso horas e horas, sem parar de ler sequer para dormir. Se você me perguntasse qual livro dele recomendaria, não hesitaria em dizer-lhe de pronto “O jardineiro Fiel“, uma das mais duras acusações à utilização de seres humanos como cobaias de inescrupulosas indústrias farmacêuticas. Absolutamente imprescindível. Mas, se Le Carré foi o segundo a me fazer perder o sono, quem terá sido o primeiro?

Aqui tenho de confessar um defeito. Admiro a lógica, mas não sou escravo dela e, às vezes, escrevo como falo, com saltos, circunlóquios. Divagações.

Machado de Assis em seu conto “A agulha e a linha”, nos diverte com os diálogos entre a agulha e a linha, ambas tomadas por visões infladas de suas próprias importâncias. Não desprezo nem a agulha nem a linha, mas o que me sensibiliza é a obra que de ambas surge. Pouco me importa se o mérito maior é da agulha ou da linha ou até mesmo do tecido que, afinal, nos veste.

Me lembrei de Machado porque naquele texto, como em muitos outros, vemos Machado a fazer indagações ao leitor, numa técnica aparentemente primária de quebrar o ritmo do texto, dar-lhe um efeito especial e retomá-lo mais adiante. Copio aqui canhestramente o mestre, na tentativa de evitar o descosido de meu texto e salvaguardar-lhe a lógica que, espero, há de reaparecer. E a “Agulha e a linha” foi o primeiro texto de Machado que tive o prazer de ler. Acabara de fazer dez anos e um inesquecível professor nos fez descobrir o Bruxo do Cosme Velho. O conto estava na “Antologia Nacional”, uma coletânea de excelentes textos a nos mostrar a riqueza do idioma. Hoje, não há mais essa antologia. Tenho ainda a minha. Não a original, mas a que comprei faz muitos anos num “sebo”, pois não só visito livrarias em busca de livros novos, mas também os sebos, onde a pesca é acompanhada da paciência do caniço e não pela pressa da tarrafa.

Não conto o que segue sem emoção, mas cubro-a com o véu dos momentos amaríssimos que carregamos nas dobras de nossas rugas, a desenhar em nossos rostos os rastros do “viver-com”: a geopolítica dos afetos.

Quando Ramiro me levou à livraria São José, houve um momento em que se distanciou um pouco e percebi que comprava um livro e o mandava embrulhar para presente. Saímos da Livraria a pé e fomos andando em direção à Praça XV. Sentamos num pequeno botequim e pedimos um caldo de cana. Ramiro me pareceu hesitante ao retirar o dinheiro da carteira e chegou a comentar comigo que sempre, quando o sol se escondia e a noite impunha a luz artificial, sentia uma certa dificuldade no reconhecimento de números.

Falou isto como se fosse algo transitório, um pouco desagradável apenas e passou a discorrer sobre as Igrejas barrocas da Rua Primeira de Março. Tudo em voz pausada, sem ênfases, quase um sussurro como se a qualquer momento pudesse surgir Dom João VI a caminho de sua sagração.

Em casa, mostrei a meus pais o “Olhai os lírios dos Campos”, de Érico Veríssimo, de quem, até aquele ano (1951), nunca ouvira falar.

Meus pais se surpreenderam por ter saído com Ramiro e mal disfarçaram o espanto por termos ficado até depois do por do sol na rua. Nestas horas, nossa sensibilidade aciona um alarme que, por medo ou simples cautela, fingimos não ouvir.

Duas semanas depois Ramiro morria.

Tive tempo de ler antes o livro que me havia dado. Li-o de um só fôlego, fascinado com a técnica de Veríssimo a me prender a cada capítulo durante a viagem de Eugênio Fontes, desesperado, até o leito de morte de seu amor impossível.

Telefonei a Ramiro no que terá sido sua última semana de vida. Afável e amigo, riu de meu entusiasmo. Ao nos despedirmos me disse com simplicidade: “agora você já sabe seu caminho”.

Se Ramiro estivesse vivo, contaria a ele que felizmente ainda não encontrei meu caminho, mas o persigo cotidianamente, a jogar nos riachos da vida meu anzol de pacato pescador.

Depois de “Olhai os Lírios do Campo” li toda a obra de Veríssimo e considero o primeiro volume do “O Tempo e o Vento“ uma obra-prima universal. Acaba de sair uma nova edição em dois volumes. Erico, na minha opinião, pintou como ninguém mulheres sólidas e capazes de lidar com o machismo exuberante do gaúcho Capitão Rodrigo. Um reconhecimento inquestionável à firmeza da mulher brasileira. Entre Ana Terra e Bibiana meu coração acelera.

A partir do fim dos anos JK me tornei um rato de livraria diário.

A livraria Zahar, na rua México, rápido se tornou uma dádiva para os garimpeiros de livros. Além de livraria, Zahar era uma editora que se tornou indispensável para os estudiosos de assuntos sociais e econômicos. Deu ao mercado editorial brasileiro uma cara moderna com livros traduzidos do que melhor se publicava na Europa e Estados Unidos. Foi nela que tive acesso a livros de Economia normalmente só encontrados no Brasil em espanhol, vindos do México. A livraria, embora estreita, tinha um ar simpático e hospitaleiro. Passei ali muitas horas de minha vida.

Foi por esta época que o Brasil engrenava um desenvolvimentismo arrebatador. JK soube levar o Brasil com um sorriso largo antes que se abatesse sobre nossa inocência juvenil os “Idos de Março” que conosco ficaram por vinte e um invernos. Na Zahar, antes do inverno, comprei “Formação Econômica do Brasil”, de Celso Furtado, livro que contribuiu em muito para fazer de mim o que sou hoje. Um clássico.

A Editora Civilização Brasileira revolucionou o mercado editorial e sua livraria era ponto de encontro obrigatório. A criação da revista de política externa trouxe o debate internacional para as Faculdades com as distorções que, hoje sabemos, foram mais nelas plantadas do que nelas geradas. Na Rua México também frequentei a Livraria Vozes com excelentes biografias curtas e excertos de obras de poetas e escritores brasileiros. O livro sobre o Padre Vieira me propiciou a leitura dos Sermões, arrebatadores na defesa contra a Invasão Holandesa, num estilo que depois seria copiado por Carlos Lacerda, homem cuja inteligência e retórica terá marcado, para o bem ou para o mal, a década em que minha geração chegou aos Diretórios das Faculdades e à UNE.

A decisão, nos anos 60, de fazer exame para o Itamaraty, me abriu caminhos novos e me conduziu à Livraria Leonardo da Vinci, no subsolo de um dos mais conhecidos edifícios do Centro do Rio.

Confraria da França no Rio, com Dona Vanda, perita em conhecer de cor e salteado as angústias dos candidatos ao Instituto Rio-Branco. Mas, não se esgotava aí sua perspicácia. A mim, um dia me apresentou uma edição da Editora Gallimard do “La Peste” de Albert Camus. Outra imersão histórica minha na leitura obsessiva. Como um drogado, voltei lá para buscar o l'Etranger", também de Camus, que me levou, ainda que na época não suspeitasse disto, a perceber que nossa relação com os afetos é acima de tudo uma incógnita em que as variáveis da moral e da ética são inevitavelmente subordinadas a forças a desafiar nossa razão. A frase inicial “Aujourd’hui Maman est morte ou peut-être hier” me parece mais marcante que a sempre lisonjeada abertura de Ana Karenina, de Tolstoy, um livro que recomendo a todos a quem quero bem.

Recém-entrado no Itamaraty, em meio às turbulências dos anos 60, era impossível não descobrir a psicanálise. E livrarias médicas ou universitárias, como a da PUC, me municiaram com livros de Freud, Bion, Winnicott. Também seria injusto não recordar colegas no Itamaraty a se tornarem, mais do que excelentes livreiros, inestimáveis fontes de um saber continuado. José Guilherme Merquior me indicou pelo menos um livro que mudou radicalmente minha visão da arte: "História Social da Arte”, de Arnold Hauser. Meu professor de História no segundo ano do Instituto Rio-Branco, Arthur Weiss, me fez descobrir Albert Soboul e sua grandiosa história da Revolução Francesa, Cleonice Berardinelli não era uma professora, era uma Diva a nos encantar com a magia de Fernando Pessoa. Jório Dauster, outra inteligência singular, tradutor exímio das mais difíceis construções de Nabokov, me apresentou a John Cheever e me permitiu enriquecer meu conhecimento sobre o americano nova-iorquino dos anos 50. Fino analista dos impasses dos afetos.

Até hoje, não abro mão de conhecer uma livraria. Até em Nairobi, onde passei um mês, consegui desencavar uma, muito jeitosa, na galeria de um hotel.

Ler, em livrarias, é uma espécie de manifesta mania mansa. Me relaxa mais do que sauna e compete com os melhores papos com amigos, minha segunda predileção. O que descrevo nos limites deste artigo apenas arranhou a complexidade deste fenômeno que faz de minha vida uma eterna busca deste prazer aparentemente leviano de ler.

Duas palavras sobre meus dias atuais. Não creio que precise descrever os pesadelos com que nos defrontamos. Passei a escrever sobre o que nos incomoda a todos. Acho um dever cívico, se me permitem a falta de modéstia. Mas, oitenta por cento de minha vida nestes dias tenho dedicado a ler estudos de literatura e psicanálise, tema que me fascina. Quando falo de “geopolítica dos afetos” não desconheço que a palavra “geopolítica" tem em si o conceito de dominação venal ou mortal. E será apenas na medida em que despirmos os afetos desta contaminação do domínio, do ciúme, da posse é que poderemos almejar a um mundo melhor. Agora, se você quiser se servir de um requintado prato sobre esta “geopolítica dos afetos”, me permita lhe sugira ler (ou reler) "Dom Casmurro’. Machado antecipou ali conceitos depois desenvolvidos por Freud. As interações dos afetos entre o quarteto Bentinho, Capitu e Escobar, Sancha desenham um polígono de amores ostensivos e ódios camuflados digno não só de nossa atenção, mas também de nossa reverência ao gênio de Machado. A pena da galhofa, a tinta da melancolia, desnudam nosso “viver-com”, a que somos destinados desde nossos primeiros segundos nesta vida. E mesmo antes dela. A grande surpresa será virar esta página.

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EM TEMPO: Este artigo foi escrito quando soube que o presidente dos Estados Unidos havia desmontado o Ministério da Educação e retirado o apoio financeiro às mais importantes Universidades americanas. Desta forma, Trump desnuda sua ira com tudo que possa de longe fazer dos jovens americanos cidadãos a contribuir para o invejável progresso científico e tecnológico daquele país.

2. Os artigos de Paulo Nogueira Batista Junior e de José Luís Fiori, que se encontram na lista de artigos do JB digital, me parecem merecer a atenção de todo leitor interessado em melhor conhecer as causas e possíveis consequências da gestão Trump. Me orgulho de escrever na mesma página desses dois grandes e iluminados pensadores brasileiros.

3. Recomendo ainda que o leitor não deixe de ler - disponível na internet - O Observatório Internacional do Século XXI , onde há outros artigos de enorme relevância sobre os dois meses do governo Trump.

4. Tenho sérias dúvidas sobre a formação cultural de Trump. Será que ele leu Hemingway? Faulkner? Cheever? Será que ele leu a Constituição dos Estados Unidos da América?

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

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