ARTIGOS

Cem noites sem dias e uma alvorada

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Por ADHEMAR BAHADIAN*

Publicado em 06/04/2025 às 09:56

Alterado em 06/04/2025 às 09:56

Depois de cem noites, uma alvorada surge nos Estados Unidos da América e aqui no Brasil.

Nos Estados Unidos, o “New York Times” noticia a expansão de marchas populares contra a política de Trump cada vez mais questionada, quando não repelida, tanto por insuspeitos analistas políticos e econômicos - dentre outros, Paul Krugman e o próprio presidente do Banco Central americano - além de protestos crescentes nas principais cidades do país. A lua de mel com o MAGA mostra sua face autoritária de forma insustentável.

A última performance midiática de Trump nos jardins da Casa Branca, diante de uma plateia minguada e irrelevante, teve como apogeu a quase cômica sustentação nos braços do presidente de um cartaz de enigmáticos números diante de uma lista de países.

Imediatamente comparada com um anúncio de “partidas e chegadas” de um aeroporto de subúrbio, o cartaz só não levou a melhor diante da já cansativa e obsessiva exposição da assinatura pública de Trump - cada vez mais parecida com a imagem de sismógrafo de um terremoto asiático ou a de eletrocardiograma de uma arritmia grave da coronária descendente - seguida da farta distribuição de canetas obesas e talidominifórmicas. Um show besta.

No Brasil, a Alvorada foi digna dos céus de Brasília. O Senado Federal aprova por unanimidade um projeto de lei, relatado pela senadora Teresa Cristina, ex-ministra da Agricultura, que autoriza o Poder Executivo a tomar medidas cabíveis de retaliação aos prejuízos eventualmente causados ao Brasil pela política extravagante de Trump.
Posteriormente enviada à Câmara dos Deputados - e após uma tentativa de obstrução provocada por razões conhecidas de todos - o interesse nacional predomina e o projeto de lei é elevado à sanção presidencial.
Não há como não reconhecer a importância da aprovação do projeto de lei, poderoso instrumento a ser eventualmente utilizado pelos negociadores brasileiros, seja em nossas conversações bilaterais com os Estados Unidos da América, seja nas deliberações multilaterais.

Trata-se de recurso legítimo e usual em negociações diplomáticas. Todo e qualquer agente diplomático brasileiro já terá ouvido de negociadores americanos que esta ou aquela concessão, tarifária ou não, estaria impedida por lei aprovada pelo Congresso americano. Não há como não ver que se está diante de um argumento de defesa da soberania nacional, peça angular do Direito Internacional. Nada seria mais colidente com a prática das negociações internacionais do que adjetivar o uso da soberania nacional como hostil a qualquer parceiro tanto em negociações multilaterais quanto bilaterais. Apenas a má-fé ou o abuso de direito poderiam subscrever o disparate.

A gestão da política externa de Trump - e a interna também, mas isso é já denunciado por marchas de protesto como acima relatei - parece abusar de inegável poder de mercado, acompanhado de uma visão predatória do comércio internacional, para conseguir vantagens abusivas diante de concorrentes.

Os que me seguem até este ponto me permitirão esclarecer as artimanhas de Trump hoje apresentadas como legítimas para impor tarifas ao Brasil. Argumenta Trump que os Estados Unidos estão a ser historicamente espoliados pelo resto mundo, uma vez que há déficit na balança comercial entre os americanos e os demais países. O argumento é faccioso, primário e desonesto.

Vejamos o caso brasileiro. De fato, quando se consideram os últimos dados estatísticos disponíveis, o Brasil tem alguns poucos milhões de dólares a seu favor. Porém, quando se olha para o valor total de comércio, que inclui bens e serviços - royalties e outros - o superávit americano contra o Brasil supera 20 bilhões de dólares.

Trump parece ter o olho de vidro do pirata da perna de pau. Mas, ele sabe muito bem que a inclusão de serviços nas regras da OMC foi vitória dos países desenvolvidos à revelia dos interesses dos países em desenvolvimento.
Na barganha das tarifas para aumentar um pouco o acesso de produtos primários do agronegócio ao mercado americano, o Brasil e outros países tiveram que aceitar a contrapartida de incluir uma abusiva proteção das patentes farmacêuticas americanas, tema das mais graves consequências cuja amplitude escapa aos limites deste artigo.

Espanta que renomados “especialistas" brasileiros proponham “compreensão” diante desses atos abusivos de Trump. Ou ignoram - o que seria lamentável - a realidade das negociações na OMC ou tentam ignorar o direito de o Brasil lutar por seus interesses, o que, mais do que lamentável, é digno do maior desprezo acadêmico e pessoal.

De fato, o Congresso Nacional afirmou, de forma inequívoca, que não somos um país candidato a inaugurar uma nova forma de colonialismo autoritário, onde os povos de países pobres pagam excessivas tarifas alfandegárias a um hegemônico interessado em reduzir o imposto de renda da classe super-rica de Musks e outros espécimes rastejantes.

Neste ano de 2025, ainda teremos aqui no Brasil, no Rio de Janeiro e em Belém, importantíssimas reuniões dos BRICs e da COP-30. Estarão nelas chefes de Estado de aproximadamente um terço do PIB mundial. Não se trata de uma reunião de pobres coitados.

Destas reuniões podem surgir novas orientações muito mais modernas e humanas do que o "mondo cane" que os Estados Unidos de Trump, Musk, Steve Bannon "et caterva“ estão a nos propor como se fôssemos todos estupidamente ignorantes, descrentes de nossas inteligências e profundamente alienados do futuro do nosso país.


* Embaixador aposentado

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