Cineasta Jeferson De fala ao JB sobre ‘Doutor Gama’

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Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO

Jeferson De

“Doutor Gama” é baseado na vida de Luiz Gonzaga Pinto Gama (1830-1882), um dos personagens mais importantes da história do Brasil. Um homem negro que usou a lei e os tribunais para libertar mais de 500 escravos, a começar por si mesmo. Nascido livre, na Bahia no século 19, Gama foi vendido pelo pai como escravo aos 10 anos para pagamento de dívidas de jogo. Ainda escravizado, aprendeu a ler, escrever, estudou e depois conquistou a própria liberdade, tornando-se um dos advogados mais respeitados de sua época. Ele foi um abolicionista e um republicano que inspirou uma nação inteira.

Gama deixou a Bahia, radicou-se em São Paulo, onde tentou estudar Leis na Faculdade de Direito, mas não conseguiu nem efetivar sua inscrição. Dedicou-se então à leitura de obras jurídicas e literárias e, mais tarde, tornou-se um rábula, aquele que conseguia licença provisória para advogar, sem ser formado em Direito. Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) reconheceu Gama como advogado.

Para trazer essa trajetória fascinante às telas, o cineasta paulista Jeferson De convocou três atores para viver o protagonista em diferentes fases de sua vida: Pedro Guilherme (infância), Ângelo Fernandes (adolescência), César Mello (maturidade).

Produzido por Cristiane Arenas, o filme tem importância não só cinematográfica, mas também histórica e cultural. A narrativa seguida pelo diretor através da abordagem de temas como escravidão, racismo e marginalização, de forma suave e sem explicitar essas violências para falar sobre elas, é um dos pontos altos de “Doutor Gama”.

Em entrevista exclusiva ao JORNAL DO BRASIL, Jeferson De falou sobre o filme, os resultados que espera para mudar esse quadro adverso e próximos projetos.

Qual foi a maior motivação para ter realizado “Doutor Gama”?

Acredito que minha falta de conhecimento da grandeza sobre alguém tão importante para história do Brasil e, particularmente, para nós negros, foi definidor para me envolver neste projeto. Eu desejava saber mais dele e sua trajetória intelectual, mas principalmente a história de vida que é impressionante. À medida que fui me aprofundando, vem o desejo de compartilhar de forma potente a narrativa, e o cinema é o melhor lugar para isso.

Seus filmes conseguem sempre uma grande identificação com os espectadores. Qual a fórmula que segue, principalmente em filmes como este com o componente a mais da causa e de trazer á tona o viés inconsciente que contribui para a discriminação e o preconceito?

Tenho em mente sempre os espectadores, sou um espectador. Trabalho pensando nas pessoas comuns, para o grande público. Procuro, na construção dos personagens, no trabalho de preparação do ator, nas conversas no set, trazer a humanidade e assim estabelecer a identificação. Gosto muito do estudo de dramaturgia, em como podemos nos utilizar de suas articulações para narrar melhor uma história.

O filme pode ajudar a mudar esse quadro ainda tão adverso e mostrar que é possível um mundo menos injusto?

Acredito que sim. O cinema faz parte dos meios que podem levar as pessoas a pensar sua realidade, ter contato com o passado, refletir o presente e o futuro. Neste sentido, o cinema que produzo quer auxiliar as pessoas nesta tarefa, principalmente quando pensamos que o cinema feito no Brasil trabalha com recursos públicos.

Fica claro que o roteiro unifica vários protagonismos de Gama e mostra que suas pautas são contemporâneas. Como foi alcançar tão bem esse desafio?

Como artista foi algo desafiador, dar conta em 90 minutos de apresentar um personagem tão importante, para isso, partindo de um roteiro nos empenhamos em buscar apoio em pesquisa para todos os departamentos, desde a arte até a fotografia, objetos etc. Por outro lado, sabíamos que o texto de Gama possuía em si um pensamento importante para o século 21. Ele aponta para um Brasil republicano formado por pessoas livres, este ainda é um caminho a ser conquistado.

Tem algum novo projeto em mente?

Estamos trabalhando num novo filme chamado “Narciso”, baseado num curta que dirigi em 2005. É uma abordagem sobre a infância negra na América Latina.