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Paulo César Pinheiro - Capoeira: filosofia e resistência

Entrevista exclusiva

Por CÍCERO CUNHA BEZERRA

Publicado em 03/10/2021 às 11:10

Alterado em 05/10/2021 às 07:43

Paulo César Pinheiro Foto: CPDOC JB

Falar sobre Paulo César Pinheiro (1949) exige sempre principiar por sua imensa produção musical. Parceiro de gênios como Pixinguinha, Baden Powell e Tom Jobim, só para citar alguns dos 120 que figuram nos arquivos dos sites na Internet, sua obra, no entanto, não se limita ao campo musical, mas se desdobra, de forma harmoniosa, na literatura sem perder as características básicas que fazem, do seu processo de criação, expressão das raízes mais profundas de um Brasil de muitos tons. Com quase 2.000 músicas compostas e uma bibliografia dividida entre poesia (“Canto Brasileiro” (1973), “Poemas Escolhidos” (1983), “Viola Morena” (1984), “Atabaques, Violas e Bambus” (2000), “Clave de Sal – Poemas do Mar” (2003)) e romances (“Portal do Pilar” (2009), “Matinta, o Bruxo” (2010), além de livros de histórias e memórias como “História das Minhas Canções” (2010) e “Figuraças (2019)), Paulo César é unanimidade quando o tema é beleza. Beleza que se configurou, de forma especial, no CD Capoeira de Besouro (2010).

Este seu trabalho, composto como trilha sonora para a peça de teatro, Besouro Cordão de Ouro, é um marco decisivo na discografia da capoeira. 14 faixas compostas a partir de 14 toques de berimbau, dão ritmos a um passeio pela história da capoeira desde a inesgotável questão da sua origem, em seus elementos afros/brasileiros e culmina na exaltação da figura protagonista: o mítico capoeirista Manoel Henrique Pereira, mais conhecido como Besouro Mangangá. Trata-se de um itinerário marcado por valores intrínsecos à capoeira em sua história de resistência e luta contra as injustiças das mais variadas ordens. Assim como Paulo César Pinheiro, que se define como “elo de ligação entre gerações” (de Pixinguinha aos jovens do presente), a capoeira se mantém, em seus devires contínuos, como uma atividade dinâmica que atualiza suas tradições sem perder o que a faz expressão de alegria e força, a saber: seu espírito revolucionário. É o próprio Paulo César que assim a define: “capoeira nasceu e morrerá revolucionária”.

Mesmo em tempos de repressão, que culminaram com a sua criminalização no Código Penal brasileiro de 1890, até os dias atuais, nas propostas esportivas em transformá-la em atividade olímpica, ou apelos religiosos, ao enquadrá-la em práticas conversoras de estilo Gospel, a capoeira sobrevive, em grande medida, pelos esforços dos velhos e jovens mestres que, assim como Paulo César, insistem na defesa do espírito libertário e, ao mesmo tempo, plural de uma luta que fez da sua história exemplo de construção de valores inclusivos, sejam raciais, religiosos ou econômicos. Na capoeira, branco, negro, árabe, judeu, cristão, budista, ricos ou pobres, encontram, na roda, o espaço ideal em que a arte, mais do que as crenças e condições sociais, dita o movimento e faz dos corpos partes integrantes de uma dança que atualiza valores ancestrais, mas sempre presentes. Sobre isso e muito mais, conversei com Paulo César Pinheiro que, em tempos sombrios como o que estamos vivendo, aceitou falar sobre a presença da capoeira e, em particular, da figura de Besouro nas suas composições musicais e literárias. Desde a sua primeira experiência com a canção “Lapinha” (1968) até o seu último romance “Matinta, o Bruxo” (2011) percebemos o “zum,zum,zum” de Besouro alçando voo entre letras e sons. Mais do que um elemento, entre tantos outros, que invadiu as narrativas orais populares, a presença de Cordão de Ouro é imagem, para Paulo César Pinheiro, de uma filosofia nascida na observação, na experiência e desenvolvida no combate contra as injustiças. Finalmente, para quem conhece a sua trajetória musical é fácil perceber a sua mandinga poética que dá rasteira nos pesadelos, mordaças e que, diante da tirania, convoca o berimbau para tocar “cavalaria”. Se a capoeira é, como diz Mestre Pastinha, “tudo o que a boca come”, a música de Paulo César Pinheiro é alimento que mantém acesa a chama de uma arte/luta que, inegavelmente, é a imagem mais própria de uma experiência em que vida e sabedoria convergem em valores irrenunciáveis como a justiça e a liberdade.

Como nasceu a sua admiração pela capoeira?

Nasceu porque meu parceiro querido Baden Powell fez os seus “Afrosambas” com Vinícius. Eu era menino e ele já falava de capoeira e já tinha, no violão, uma puxada baiano-capoeirística. Isso me chamou muita atenção. Ele morou na Bahia e se envolveu muito com a capoeira e trouxe para mim a cantiga “quando eu morrer me enterre na lapinha”, que é parte dos cantos do próprio Besouro. Eu tomei contato com Besouro pela obra de Jorge Amado Mar Morto no capítulo “Viscondes, condes, marqueses e Besouro”. Há uma insinuação de que Jorge escreveria um romance sobre Besouro, mas não fez. Eu fiquei com essa ideia na cabeça e, depois de Baden, quando fizemos Lapinha, Besouro se agigantou dentro de mim. A partir de então eu comecei a fazer algumas coisas que remetiam a esse personagem. Personagem rico e pouco explorado até então na Bahia. Na verdade, a ideia não era um livro, mas um filme. No entanto, parti para o teatro e fiz um musical chamado “Besouro Cordão de Ouro” que ficou durante 10 anos em cartaz pelo Brasil. Para fazer essa peça eu tive que entrar nesse mundo e estudar profundamente a história desse personagem. Fui para Santo Amaro (BA) e fiquei 15 dias na casa de um parceiro meu, já falecido, chamado Jorge Portugal. Pesquisei muito sobre Besouro. Saí de lá com algumas fitas k7 com testemunhos de muitos idosos que conheceram Besouro em Santo Amaro. Besouro era um herói popular. Gravei tudo e fiz uma peça. Achava que as músicas que já havia feito seriam parte da peça, no entanto, quando o roteiro ficou pronto, as músicas não tinham muito a ver. Eu tive que criar um repertório novo. A partir dos toques de capoeira que aprendi e decorei fiz as melodias em cima desses toques. Cada música segue um toque diferente (São Bento Grande, Barravento…).

Você trabalhou com Mestre Camisa, qual a participação dele na feitura do espetáculo “Besouro Cordão de Ouro”?

Fundamental. Conhecedor dos toques e grande tocador de berimbau. No disco temos dois grandes amigos, Camisa e Lobisomen. Grandes mestres que participaram do disco e da peça. Camisa eu conhecia há mais de 30 anos do tempo do teatro opinião e se converteu em um grande amigo no ensinamento e preparação dos atores. Toques e jogos.

O que lhe impressiona na figura de Besouro?

Besouro era um herói popular. Negro, uma espécie de revolucionário. Saveirista, uma espécie de lenda. Onde Besouro estava as pessoas iam atrás. Muitas histórias de alguém que lutava pelo bem contra o mal. Ele virou lenda. Feiticeiro, corpo fechado no candomblé. Virou Exú Kérékeké. Besouro era o maior capoeirista, segundo Jorge Amado, que tinha paixão por ele. Tinha aura de guerreiro, herói para as crianças. Histórias curiosas e bonitas. Besouro é um personagem de romance mesmo.

Você conheceu mestres na Bahia?

Sim. Mestre Caiçara, personagem inclusive na peça. Edil Pacheco, parceiro baiano, me apresentou. Caiçara foi cangaceiro do bando de Lampião. Corpo cheio de bala, de tiro. Eu me sentava no pelourinho e conversávamos. Eu adorava ouvir suas histórias. Personagem riquíssimo da Bahia. Quando o conheci já estava bastante velho.

Você chegou a frequentar rodas de capoeira? 

Sim. Eu gostava de ver, tanto no Pelourinho, como nas academias no centro histórico. Sempre gostei. Na verdade sempre tive grande fascínio pelo jogo e toques. Os toques são atraentes, sedutores.

Como você enxerga o papel do berimbau na capoeira?

É a alma da capoeira. O condutor. Sem berimbau a capoeira fica vazia. É o senhor da capoeira. Os toques são o que determinam o jogo, a dança, a peça fundamental para todo desenvolvimento. A capoeira pode até não ter começado com o berimbau, mas sem ele hoje não tem capoeira. É a força. Como uma corda só, uma vara com arame e uma pedra gera tudo isso? É muito curioso. Naná Vasconcelos, amigo e um dos maiores tocadores de berimbau, tinha um instrumento especial. Um ciúme danado. Fazia coisas que não conheço outro fazer. Para ele tocar berimbau virou algo maior.

Você, no disco Capoeira de Besouro, parte da ideia de que a capoeira engravidou na África e pariu no Brasil? Uma metáfora interessante para pensarmos a origem da capoeira, é isso mesmo?

Nasceu aqui. Não é africana, mas tem raízes na África. Por isso digo que pariu aqui no Brasil e, neste sentido, é brasileira. Compositores e escritores angolanos me afirmaram não existir capoeira na África. É uma grande invenção em solo brasileiro envolvendo dança, jogo de guerra, defesa e luta.

E como você entende a distinção entre Angola e Regional?

Sim, têm características específicas, mas não entro nesse terreno. Escuto de fora e não levanto bandeira. Transmito o que sinto.

Você chegou a ouvir compositores de dentro da capoeira?

Sim. Vários. Diversos discos. Toque que não conhecia como, por exemplo, Barravento eu escutei em um disco de Sérgio Acarajé. É interessante dizer que os capoeiristas que são amantes do jogo, inventam toques novos. Há um processo de criação contínuo.

E como foi o processo de criação do Disco?

Muito trabalhoso. Eu ouvi os toques, gravava, aprendia e compunha em cima deles. Foram 14 toques para 14 músicas diferentes. Trabalho insano, fui, literalmente, guiado pelos toques.

Nas letras aparecem relações profundas com a brasilidade, a mestiçagem, (branco, negro e índio). Como você encara uma crítica de que Mestre Bimba teria embranquecido a capoeira?

Uma Piada. Conversa furada. Bimba, Pastinha, cada um tinha o seu caminho, o resto é folclore criado a partir disso. Ninguém embranqueceu nada. Eu sou índio, minha raiz é índia, minha avó era índia pura, Guarani. Vivi a maior parte da minha vida na casa dela em Angra dos Reis; na verdade fui criado na casa da minha avó. Tenho raízes muito fortes e com isso vão dizer que “indianizei” a música brasileira? Tudo é prosseguimento. Vamos passando adiante nossas fontes. Tudo se transforma, do contrário não teria graça. A capoeira faz isso, ou seja, é prosseguimento, reinvenção, etc.

Olhando para a capoeira, nessas relações com um Brasil mestiço, dinâmico, você diria que a capoeira e o samba dialogam com partes de fontes comuns?

É tudo de raízes africanas. Não sei onde, nem como começaram, mas são raízes antigas. O samba e choro por exemplo. O choro por volta de 1830 já existia e o samba também, talvez com outros nomes e braços. O jongo e o lundu têm um corações de choro. São transformações antigas e que têm na oralidade suas fontes.
Se você olhar bem, Pixinguinha e Bach dialogam. Se você bota os concertos de brandenburgo, você vai ouvir muito choro ali. É uma mistura muito antiga. Coisas inexplicáveis. Tem uma frase de Fernando Pessoa e que gosto muito de citar que diz: “todos me saibam sentir, mas ninguém me definir”. Esta é a alma do que temos na gente. Por que definir? Definições são sempre incompletas. Não há como chegar ao princípio. Nem nisso, nem em nada. Quero dizer que não é só em música, é em tudo. O candomblé tem muita coisa na música. As escolas de samba têm toques específicos que caracterizam cada uma. Quando entra na avenida já é identificada. Igual aos toques candomblé ou da capoeira, cada escola de samba tem um orixá padroeiro. Não dá para explicar isso. São tradições muito antigas. Em cima dos toques as coisas se desenvolvem. Os toques são importantes em três coisas: Escola de samba, candomblé e capoeira. Três forças da natureza musical. Cada uma com seus toques.

Mudando um pouco da música para o pensamento, você diria que há na capoeira uma filosofia como ouvimos tantos mestres falarem?

Com certeza. Uma filosofia popular. Filosofia você aprende com os sábios chineses e, também, com os capoeiristas (risos). A filosofia é universal e popular. Nasce de uma observação. Os mestres estão sempre ligados a um astral superior. Para quem é religioso... (pausa), tem muitas coisas aí. As letras de capoeira com refrões do tipo “balança que pesa ouro, não é para pesar metal”, se assemelha com o samba e, nos dois casos, temos poetas populares que são filósofos. O que é Noel Rosa se não um filósofo? Noel também usou, como também usei, os trechos de um canto de Besouro: “quando eu morrer…” (canta). São sete estribilhos que compõem os cantos de Besouro. Usei um com Baden e Noel fez outra sozinho usando o trecho “quando eu morrer não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela”. Isso é de Besouro! Que na verdade não é gravada, mas bordada. Esses cantos estão na tradição oral que Noel ouviu na pequena África, que ficava na praça 11 e que Noel, em torno dos anos 20, frequentava quando vinha da Vila e parava para beber, escutar samba e cantar. Lá estavam as tias baianas e as mineiras que, além de cantarem essas coisas todas, criaram um prato único dessa mistura, o angú à baiana. Uma mistura de angú mineiro e sarapatel baiano. Pois bem, Noel escutou esse canto das tias que viveram em Santo Amaro, na terra de Besouro. É tudo para de um repertório oral.

Você diria que, junto ao filosófico, haveria um aspecto político na capoeira? Ouvindo o seu disco tenho a impressão de que você mistura capoeira e política. Essas coisas se misturam?

Besouro era político, também. Ele se meteu em política na Bahia no tempo dele. Na verdade ele era um revolucionário, em todos os sentidos. Agora, política e capoeira não se misturam, são misturadas. A capoeira é um ato de resistência. A capoeira, tem uma coisa linda, está no mundo inteiro e quem joga capoeira aprende português e a cultura brasileira. Portanto, jogar capoeira é um ato de resistência.Talvez a importância que a capoeira tem ainda não foi totalmente pensada. É uma força cultural revolucionária em si mesma. Nasceu e vai morrer revolucionária.

Pegando um pouco essa deixa, como você interpreta o mais novo movimento na capoeira intitulado de “capoeira Gospel”? Você compartilha da opinião de que a capoeira não sofre nenhuma alteração com as mudanças dos conteúdos das suas letras que, quase em sua totalidade, expressam imagens e crenças religiosas plurais e que, com sua vertente Gospel, tende a padronizar na visão cristã?

A capoeira não tem visão religiosa. Ao misturar-se com uma religião específica tende a acabar. A capoeira não deve se misturar com nada. Deve ser estudada, compreendida, praticada naquilo que tem de elementos plurais e diversos. Capoeira com igreja involui, não evolui. Se você observar os cantos são plurais:“menino quem foi teu mestre, meu mestre foi São Salomão” e não quer dizer que seja judeus, pentecostal, candomblecista, nada disso. Capoeira é outra coisa.

Finalmente, ao ouvir o seu CD não pude deixar de observar a atualidade das suas letras. Temas que hoje são questionados por uma política, que parece não valorizar as diferenças, ecoam com toda a força da sua poesia e sob o peso da sua voz marcante que, para mim, insere a capoeira nos grandes desafios sociais e políticos atuais no Brasil. Como exemplo cito a condição de exclusão que as comunidades quilombolas enfrentam e, mas especificamente, o caráter militar da democracia, além, obviamente, do combate, sob a imagem de Besouro, das injustiça e violências contra os negros. Como percebe, diante desse contexto que suas letras já profetizavam, a capoeira?

Vou te responder com uma história. Recentemente eu estava na feira, em um sábado, e um garoto jovem, com uma camiseta com escritos de capoeira, me observava. Percebi que era capoeirista; ele se aproximou e perguntou se eu era o Paulo César Pinheiro. Diante da minha resposta positiva, ele disse: “voce sabe que o seu disco é a bíblia da capoeira hoje em dia?”. Fiquei impressionado com a expressão “a bíblia da capoeira” e, para mim, isso demonstra que os capoeiristas sentiram, pelo meu disco, a força da capoeira. É essa mesma força que atravessou gerações que está no CD. Achei isso muito curioso.

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Cicero Cunha Bezerra -  Doutor em Filosofia, Professor da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador do CNPq.

 

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