CADERNOB

Viva o Ziraldo, que faz 90 anos

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Por GILBERTO MENEZES CÔRTES
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Publicado em 24/10/2022 às 20:40

Alterado em 24/10/2022 às 22:50

Ziraldo 90 Divulgação

Conviver com o Ziraldo sempre foi um privilégio. Garoto, já era fã de suas tirinhas do Pererê, que o JORNAL DO BRASIL publicava nos anos 60. Em 1972, entrei no JB onde as charges do Ziraldo eram uma janela aberta para a contestação num país sob a censura da ditadura. Depois, ele se afastou do JB para mergulhar de cabeça na grande obra que foi O Pasquim. Mais adiante, ele veio com a satírica “Bundas” a debochar da “Caras”.

Na volta do JB às bancas, em 2018, projeto que coordenei, Ziraldo era um dos mais entusiasmados. Amigo de Omar Resende Peres (Catito), que ressuscitou o JB, conversávamos sempre, no final de 2017, no Bar Lagoa, sobre os planos para o novo velho JB. Ziraldo iria comandar o Caderno B (função que exerceu na gestão de Nelson Tanure, quando criou o Caderno Z) e fazer uma curadoria de novos talentos das charges e caricaturas. Eram papos de três entusiasmados, com a liderança invertida pela ordem alfabética. E Ziraldo já estava envolvido com a charge da capa sobre a volta do JB às bancas.

Nos despedimos num domingo e no sábado seguinte, no final de dezembro de 2017, Ziraldo chega meio trôpego no Lagoa, guiado pelas mãos da esposa Márcia, xará de minha mulher. Ficamos todos assustados. Catito perguntou: “O que houve, Ziraldo?”. E o mestre onipresente e incansável respondeu: “De repente, envelheci”. Ziraldo estava com uma hidrocefalia que lhe tolhia os movimentos. Os planos do Caderno B mudaram. Mas ele se recuperou e está festejando os 90 anos. Não é pouca coisa. Não há páginas para homenagear tanto talento.

Por isso, tomamos emprestado um texto delicado e amoroso escrito pela minha amiga Paula Guatimosim, mineira e sensível, como o mestre, e que foi publicado hoje, 24 de outubro, no site da Revista “Plurale, da também minha amiga Sônia Araripe, antiga colega de JB.


Ziraldo, Ziraldo ...


Por Paula Guatimosim, Especial para Plurale

Conheci o Ziraldo pelas mãos do produtor Tarcisio Vidigal, também mineiro e meu primo. Colecionador de quadrinhos e outras centenas de revistas, amigo de longa data de Ziraldo, foi ele o produtor dos dois filmes O Menino Maluquinho, personagem de maior sucesso do escritor, que além de livro, virou filme, teatro, musical, ópera, série para a TV e agora ganhará a animação da Netflix. Foi em 2015 que Tarcisio me convidou para participar do projeto e da produção da exposição Pererê do Brasil, em homenagem a esse icônico personagem, que completava 55 anos.

Não poderia imaginar o quanto seria prazeroso esse trabalho, que teve início em Salvador, seguindo para Recife, Brasília e se encerrando, em janeiro de 2017, em Fortaleza. Todos os contratos com a Caixa Cultural previam a presença do autor na abertura de cada exposição. Então, para compensar o estresse típico da produção, que a gente só vai saber na hora da montagem, tive o privilégio de conviver por dois anos com o jornalista, cartunista, chargista, pintor, escritor, cartazista, caricaturista, poeta, cronista, desenhista (ufa!) Ziraldo, com sua dedicação, tiradas bem-humoradas e inspirações.

À época com mais de 80 anos, Ziraldo ainda fazia questão de promover sessões de autógrafos em todas as exposições, resistindo bravamente às intermináveis filas que duravam até três horas. E suas dedicatórias cuidadosas, com momentos de escuta, incluíam desenhos e frases que brincavam com nomes como Marisol, que ganhava ondas e sol. Muitas vezes ele também acompanhou grupos de estudantes às visitas guiadas da exposição. Seu interesse pelo que pensa a juventude e sua curiosidade pela língua portuguesa o fazia sempre interagir com crianças e jovens.

Sem papas na língua, Ziraldo fala tudo o que quer, na hora que lhe “dá na telha”, só para usar uma expressão típica dos mineiros. Sua disponibilidade para atender a imprensa também me surpreendeu. Veículo nenhum queria perder a chance de entrevistar pessoalmente o premiadíssimo autor de mais de 130 livros – com mais de 8 milhões de exemplares vendidos -; autor único dos 60 cartazes da Feira da Providência, possivelmente a mais duradoura parceria entre um artista e uma instituição; com o criador de Flicts, um dos livros que marcaram não só a minha infância como a de milhares de crianças; e pai do Menino Maluquinho. Em Brasília, deu entrevista passeando na Brasília Amarela do jornalista Daniel Zukko (#minhabrasilia), que tem mais de 70 mil seguidores e 2.546 publicações, ocasião em que confessou que, quando conheceu Monteiro Lobato, “se urinou todo”.

Conviver com o Zira é prazer, é aprendizado, é fácil. De quebra, fui conhecendo a família: Adriana Lins, sua sobrinha designer e responsável pelo projeto expográfico, virou parceira; Santinha, sua querida irmã, estava sempre presente quando Marcia, a esposa, não podia acompanhá-lo nas viagens. Eu não podia perder a chance, e numa manhã, no café, dei-lhe uma folha A4 e pedi: “Faz um desenho pra mim?”. Ele pegou a caneta e o lápis preto no bolso e desenhou um autorretrato. Ao longo da temporada da exposição, comemoramos aniversários e a vida, no prazer de ver a emoção de crianças, jovens e adultos encantados pelo Pererê e sua turma.

Entre 2018 e 2019 também tive o prazer de participar da produção do documentário de longa-metragem A Turma do Pererê.Doc, obra do Tarcisio Vidigal (Produtora Filmes de Minas), dirigida por Ricardo Favilla. Dessa vez, contar a história do Pererê incluía depoimentos de companheiros de luta em O Pasquim, como Jaguar, e colegas de profissão como Laerte e Maurício de Sousa, que diz que perdeu o nascimento da sua filha Mônica porque estava desenhando o Pererê, a pedido do Ziraldo. Nessa empreitada ele me proporcionou a chance de conhecer especialistas em quadrinhos e literatura como Ota, Álvaro de Moya (já falecido), Gonçalo Júnior, Franco Rosa e Ivan de Lima Gomes. Foi muito gostoso acompanhar Ziraldo em diversas locações para falar sobre seu personagem.

 

Mas quem é Pererê?

O personagem Pererê foi criado em 1960, em meio a movimentos importantes como a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro Oficina, o Centro Popular de Cultura; e até hoje continua atual. Em plena ditadura militar, Pererê adotava uma postura anti-imperialista e nacionalista tendo sido a primeira revista de quadrinhos brasileira a cores e de um único autor, criada para enfrentar as publicações estrangeiras como Luluzinha, Bolinha, Pato Donald.

Na Mata do Fundão, Ziraldo reuniu em torno do Pererê animais tipicamente brasileiros como onça, coelho, jabuti, macaco, tatu e coruja – inspirados em amigos da mocidade em Caratinga – além, claro, do indiozinho Tininim e sua namorada Tuiuiú. Pererê carrega a marca de ter sido o primeiro personagem brasileiro das histórias em quadrinhos a abraçar a bandeira da preservação da natureza, abordando também temas ligados à ética, inclusão social, reforma agrária, entre outros. Ziraldo também levava para as páginas da revista personalidades como o Cardeal D. Eugênio Sales e o cineasta Luiz Carlos Barreto. Em quatro anos foram publicadas 43 edições, com uma tiragem média de 120 mil exemplares. Mas com forte conteúdo político e crítico, não por acaso parou de circular em março de 1964, pouco antes do golpe militar.

A exposição para comemorar os 55 anos do Pererê tinha identidade visual com base na linguagem das histórias em quadrinhos, para explorar de forma lúdica a criação e desenvolvimento dos personagens, usando a alegria e o humor como fios condutores. Uma linha do tempo contava a trajetória do personagem em diversas mídias, como TV, teatro, desenhos animados, quadrinhos animados em formato digital, material gráfico de produtos licenciados, publicações de revistas e livros de várias editoras, campanhas publicitárias e cartilhas educativas. Todas as obras da mostra foram restauradas e ampliadas, inclusive as 60 capas. Entre as curiosidades, a capa da edição de maio de 1964, que nunca foi lançada.

Em Salvador, após um mês em cartaz, a exposição já havia acumulado o segundo maior público da Caixa naquele ano. O sucesso fez com que a mostra conquistasse itinerância, seguindo para Recife, Brasília e Fortaleza. Em Recife, atingiu seu maior público, mais de 40.0000 pessoas e 40 instituições de ensino (públicas e particulares), com atividades extras voltadas para crianças. Na Caixa Cultural Brasília, a exposição obteve o mais expressivo resultado de imprensa, com mais de 100 inserções nas diversas mídias, incluindo três capas no primeiro Caderno do Correio Braziliense. Em Fortaleza, ocupou as galerias 1 e 2, demandando um novo projeto expográfico, com mais vitrines e espaços e mais artes para fixação nas paredes.

No momento, está no prelo uma edição comemorativa do livro O Pipoqueiro da Esquina, uma parceria entre Carlos Drummond de Andrade e Ziraldo. Editado originalmente pelo Pasquim, e depois pelo Círculo do Livro, O Pipoqueiro da Esquina comemora os 90 anos do Ziraldo e os 120 de nascimento do Drummond. O livro apresentará 100 pipocas produzidas por Drummond e as respectivas charges, ‘transcritas’ por Ziraldo.

E, no dia 24 de outubro, estaremos todos, criança e adultos, a cantar, com emoção e agradecimento, os parabéns para esse admirável artista pelos seus 90 anos.

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