‘O Rio do desejo’, de Sérgio Machado, estreia quinta nos cinemas
‘A literatura de Milton Hatoum é cheia de subtextos, segredos e de coisas não ditas, e isso me atrai muito’, diz o cineasta sobre o escritor amazonense, autor de conto-inspiração do filme
Estrelado por Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira, Gabriel Leone e Rômulo Braga, a história de “O Rio do desejo” retrata uma situação complexa entre três irmãos que se apaixonam pela mesma mulher.
Baseado no conto “O Adeus do Comandante”, do amazonense Milton Hatoum, o filme é roteirizado pelo diretor, por George Walker Torres e Maria Camargo. Milton, pela primeira vez, assina a colaboração de um roteiro para o cinema.
A narrativa segue Dalberto (Oliveira), um comandante de barco que transporta um passageiro em uma longa e arriscada viagem pelo Rio Negro. Durante esse período de ausência, sua parceira Anaíra (Charlotte) acaba se aproximando dos irmãos de Dalberto, Armando (Leone) e Dalmo (Braga).
O filme foi exibido no Festival Internacional de Punta del Este, no Uruguai, no qual Machado e Charlotte receberam uma menção honrosa de melhor diretor e atriz.
Em novembro último, o longa – que é uma produção da TC Filmes, em coprodução com a Gullane e a SPCINE – conquistou o prêmio de melhor fotografia na 26ª edição do renomado Festival Tallinn Black Nights (POFF), na Estônia.
Machado nasceu em Salvador e a partir de 1995 passou a trabalhar com o cineasta Walter Salles como assistente de direção de “Central do Brasil” e “O primeiro dia”, além de roteirista e assistente de “Abril despedaçado”.
Dirigiu o documentário “Onde a terra acaba”, que foi premiado em mais de 15 festivais, entre os quais Biarritz, Havana, Festival do Rio e Mostra Internacional de São Paulo.
“Cidade Baixa”, seu primeiro longa de ficção, estreou no Festival de Cannes e já ganhou 30 prêmios no Brasil e exterior, entre eles os troféus principais dos Festivais do Rio, Huelva, Verona e Mons. Dirigiu ainda o tocante “Tudo que aprendemos juntos”, que encerrou o Festival de Locarno e foi o melhor filme da Mostra Internacional de São Paulo.
No momento, está trabalhando em parceria com Salles na animação “A arca de Noé”, produzida pela Gullane, inspirada nos poemas infantis de Vinicius de Moraes e com lançamento previsto para este ano.
Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, Machado falou sobre a motivação para realizar o “O Rio do desejo”, descreveu os passos para desenvolvimento do roteiro e deu detalhes do próximo projeto que marca sua estreia em longas de animação.
JORNAL DO BRASIL: Qual a principal motivação para adaptar o conto “O adeus do comandante”, de Milton Hatoum, para as telas?
SERGIO MACHADO: Eu tive o primeiro contato com esse conto quando estava me preparando para filmar “Tudo que aprendemos juntos”, as filmagens foram adiadas, fiquei angustiado e procurei a Josélia Aguiar, amiga e colega de faculdade que se tornou crítica literária. Eu pedi pra ela me indicar alguns dos melhores livros brasileiros lançados nos últimos anos. Comprei uns dez, mas quando comecei a ler Cidade Ilhada tive a certeza de que era por aquele caminho que iria enveredar. A grande dúvida foi qual dos contos eu adaptaria. Cheguei a pensar na possibilidade de misturar todos, mas acabei optando por “O adeus do comandante”. Acho que o que me fez desejar levá-lo para as telas foi a narrativa cheia de silêncios e mistério. O conto é totalmente visual. Sou apaixonado por filmes em que as imagens são mais importantes que os diálogos. A literatura de Milton é cheia de subtextos, segredos e de coisas não ditas, e isso me atrai muito. O tema das paixões levadas às ultimas, e dos homens que disputam uma mulher, de algum modo também me interessa.
Poderia, por favor, descrever um pouco mais como foi o desenvolvimento do roteiro escrito a quatro mãos por você, George Walker Torres, Maria Camargo e Milton Hatoum?
Quando decidi adaptar “Cidade Ilhada”, procurei o Milton. Ele topou de primeira e ainda me apresentou a Maria Camargo, que é profunda conhecedora do universo dele e ainda foi responsável por trazer um olhar feminino para a adaptação. O George Walker Torres é um Venezuelano que estudou roteiro em Los Angeles e em Paris. Ele tem um conhecimento técnico vasto e é um dos melhores leitores que já conheci. Ele funcionou sempre como uma espécie de consciência crítica do projeto, dando limites e nos balizando para a gente não se perder no caminho.
Eu dei a sorte de reunir um grupo generoso e sem muitas vaidades, todos mexeram no texto e deram ideias. Foi um processo dinâmico e rico.
Você já declarou em entrevistas que, quando falou com Milton, ele se dispôs a escrever outros contos que falavam sobre o que acontece antes e depois da história. E que os novos contos escritos por ele eram tão bons quanto o original. Seria possível explicar isso um pouco mais?
O Milton me disse que cada conto que ele escreve é como a ponta de um iceberg. Ele sabe muito mais sobre os personagens e sobre a história do que aquilo que está escrito. Eu então pedi para ele ir escrevendo outros contos para nos ajudar na adaptação e esclarecer coisas que não estavam escritas na história que foi publicada. Acho inclusive que o filme tem mais elementos das narrativas novas do que do original.
O Dalmo, o terceiro irmão, que é decisivo no filme, por exemplo, não aparece no conto original, mas há um conto que o Milton fez apenas com o ponto de vista dele. O Milton escreveu também sobre os sonhos de Anaíra, dando uma atmosfera quase mística ao personagem. Esses novos contos ficaram tão bons que o Luís Schwarcz, editor do Milton, sugeriu que ele os juntasse e os transformasse numa novela (estou torcendo muito para isso!).
O Milton é de uma generosidade impar, além de ter escrito os contos ele sempre esteve disponível para conversar e debater as ideias que eu ia tendo. Ele mexia nos textos, fazia sugestões e adaptava os diálogos para o jeito de falar do norte. A Maria Camargo disse numa conversa que tivemos com o público que o único problema que se tem ao adaptar o Milton é que a gente fica ‘mal acostumado’ e não quer mais parar. Uma prova disso é que junto com ela, e com as bênçãos do Milton, estou me preparando para adaptar “Cinzas do Norte”.
Pode adiantar detalhes do seu próximo projeto, a animação “A arca de Noé”?
“A arca de Noé” é um projeto que venho desenvolvendo há anos com o Walter Salles e a Suzana de Moraes. Mais tarde, a gente trouxe a Gullane e a NIP, produtora brasileira especializada em animação. “A arca...” é inspirada nas poesias infantis escritas e musicadas por Vinicius de Moraes, que fizeram a delicia de diversas gerações que cresceram cantando: ‘Lá vem o pato pataqui patacolá’, e a casa engraçada que não tinha teto nem nada.
Como as músicas eram soltas e não havia qualquer história que as ligasse, eu fiquei encarregado de criá-la. Os dois protagonistas da história que inventei são ratinhos ligeiramente inspirados em Vinicius e Tom, que precisam se provar serem grandes artistas e vencer injustiças orquestradas por um leão que resolve dar um ‘golpe’ na arca e subjugar os animais menores e mais fracos. “A Arca...” foi de certa forma concebida desde o inicio como uma fábula antifascista para crianças.
Os trabalhos duraram muitos anos, a pandemia e o pandemônio por qual passou a cultura brasileira atrasou os trabalhos, mas também nos deu mais tempo para aprofundar nossas escolhas estéticas e afinar o roteiro.
Estamos muito felizes com os resultados, é um projeto grande, em 3D, que pretende atingir o grande público no Brasil e no mundo. Foi comprada pela CMG, uma companhia de vendas sediada em Los Angeles, e já foi vendida para mais de 25 países.
A parte criativa foi toda feita no Brasil, mas a parte técnica está sendo finalizada na Índia. Parte da nossa equipe foi para lá. Nesse trabalho dividi a direção com o peruano Aloís de Léo, especialista em animação.