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Presa na ditadura e expulsa dos Mutantes, Rita Lee era rebelde na música e na vida

Rainha do rock morreu na noite desta segunda-feira, em São Paulo, aos 75 anos; relembre a carreira de polêmicas e sucesso

Por GABRIEL MANSUR
redacao@jb.com.br

Publicado em 09/05/2023 às 21:20

Alterado em 09/05/2023 às 22:02

É difícil falar de Rita Lee, sem falar de pioneirismo Marco Senche/Wikimedia Commons/Agência Brasil

A morte da cantora Rita Lee deixa uma lacuna na música brasileira. Foram quase seis décadas de irreverência e independência feminina que a creditaram como "rainha do rock", título que ela detestava: "prefiro padroeira da liberdade", declarou uma vez.

É difícil falar de Rita, sem falar de pioneirismo. Sempre moderna, ela foi a primeira mulher a tocar guitarra nos palcos do país, ajudou a incorporar a revolução do rock à explosão criativa do tropicalismo, formou a banda brasileira de rock mais cultuada no mundo, os Mutantes (de onde foi "expulsa' pelo ex-marido), e criou canções na carreira solo com enorme apelo popular.

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Rita Lee durante show em 1972 (Foto: Wikimedia Commons)

Em suas músicas e na vida pessoal, expôs temas e atitudes que desencadearam tabus, das drogas à liberação sexual. Como outros grandes da época, foi perseguida e presa pelos ditos autoritários do regime militar. Mas nunca se silenciou. Ao contrário: o autor de sua biografia, Guilherme Samora, obteve documentos que indicam que a cantora incitou a rebelião.

Um dos arquivos obtidos alega que a artista infringiu a Lei de Segurança Nacional ao citar políticos da época. Por esse motivo, os censuradores decidiram vetar a música “Arrombou o cofre”. Pelo menos outras 15 não foram aprovadas no crivo dos militares.

Os Mutantes e o tropicalismo...

Toda essa trajetória começou em 1964, justamente no ano do golpe militar. Rita tinha 17 anos quando entrou em um grupo de rock chamado "Six Sided Rockers" que, depois de algumas mudanças de formação e de nomes, originou os "Mutantes" em 1966. A banda foi formada inicialmente por Rita Lee, Arnaldo Baptista, que é seu ex-marido, e Sérgio Dias.

O trio foi um dos precursores do tropicalismo. Acompanhou Gilberto Gil em “Domingo no parque”, no 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, e Caetano Veloso em “É proibido proibir”, no 3º Festival Internacional da Canção da Globo, em 1968, dois marcos da tropicália.

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Rita e Gil eram amigos de longa data e compadres (Foto: Instagram/Rita Lee)

Ela fez parte dos Mutantes no período mais relevante e criativo da banda, de 1966 a 1972. Gravou “Os Mutantes” (68), “Mutantes” (69), “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado” (70), “Jardim Elétrico” (71) e “Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretz” (72).

Em meio a divergências criativas e uma relação atribulada com Arnaldo Baptista, com quem foi casada de 1968 a 1972, Rita Lee foi expulsa da banda em 1972. O primeiro álbum solo foi gravado em 1970, o “Build Up”, com uma repercussão muito positiva e ainda na formação da banda.

O segundo, “Hoje é o Primeiro Dia do Resto de Sua Vida”, também foi gravado com Os Mutantes, em 1972, porém com a proposta de ser oficialmente o segundo álbum solo de Rita Lee.

Prisão por porte de maconha

A vida depois dos mutantes tomou forma com o grupo Tutti Frutti, no qual ela gravou cinco álbuns, com destaque para “Fruto proibido”, de 1975. Em 1976, Rita conheceu Roberto de Carvalho, por quem se apaixonou e que se tornaria seu maior parceiro musical e de vida até o fim.

Em agosto daquele mesmo ano, já grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee, Rita foi presa pela ditadura por porte de maconha. Tudo começou quando a Divisão de Entorpecentes bateu na porta de sua casa, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo.

A polícia informou à imprensa na época que foram até a residência da cantora depois de receberem denúncias relacionadas a uso de drogas na temporada de shows com a banda Tutti-Frutti no Teatro Aquarius.

Depois de revirarem tudo na casa, disseram ter encontrado 300 gramas de maconha, além de restos de cigarro e um narguilê.

Na época, Rita garantiu que a droga não lhe pertencia e afirmava que tinha parado de fumar depois de descobrir a gravidez, mas os agentes não ouviram. Em entrevista à revista Quem, em 2010, a rockeira alegou, ainda, que tudo aquilo havia sido plantado pela polícia, em um plano para incriminá-a e, por fim, prendê-la.

Afinal, não só era declarada pelo governo uma guerra às drogas, como também a própria Rita Lee simbolizava a liberdade sexual feminina em um período extremamente conservador.

A ajuda de Elis Regina

No segundo dia de prisão, Elis Regina foi visitá-la, acompanhada do filho João Marcelo Bôscoli, então com 6 anos. Durante a visita, Elis exigiu que um médico visitasse a roqueira. Rita lembrava-se com carinho porque Elis foi a única artista a visitá-la na cadeia.

Depois de alguns dias presa, Rita foi julgada e condenada à prisão domiciliar e multa de 50 salários mínimos.

A carreira solo

Após cumprir a prisão domiciliar, Rita ainda lançou mais um álbum com o Tutti Frutti, porém em 1978 decidiu seguir carreira-solo, tendo como inseparável companheiro o marido, Roberto de Carvalho.

Nessa época, ela escreveu e gravou canções de pop rock com grande sucesso. Um dos álbuns mais bem sucedidos foi “Rita Lee”, de 1979, com “Mania de Você”, “Chega mais” e “Doce Vampiro”. No disco de mesmo título do ano seguinte, ela segue na direção mais pop e faz ainda mais sucesso com “Lança perfume” e “Baila comigo”.

Ela era uma roqueira popular antes e depois de o gênero se tornar um fenômeno comercial no Brasil em meados dos anos 80. Entre os álbuns de destaque estiveram “Saúde” (1981) e “Rita e Roberto” (1985). Também em 85 a cantora e seu marido subiram ao palco do primeiro Rock in Rio.

Os obstáculos

Por volta de 1991, ela começou um período de quatro anos separada de Roberto de Carvalho. O retorno foi em 1995, na turnê do álbum “A marca da Zorra”, quando ela também abriu os shows dos Rolling Stones no Brasil. No ano seguinte, eles se casaram no civil após 20 anos juntos.?

Em 1996, ela caiu da varanda do seu sítio, sob efeito de remédios, e quebrou o recôndito maxilar. Rita começou a tentar largar o álcool e as drogas, mas disse ao “Fantástico” que só conseguiu fazer isso em janeiro de 2006, quando já tinha 49 anos.

O começo do fim

Em 2001, Rita Lee ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa, com “3001”. Ela ainda teria mais cinco indicações ao prêmio, e receberia em 2022 o prêmio de Excelência Musical pelo conjunto da obra.

Em 2012, ela anunciou que deixaria de fazer shows por causa da fragilidade física. “Me aposento dos shows, mas da música nunca”, ela escreveu no Twitter.

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Rita já no penúltimo ano de shows, em 2011 (Foto: Flickr/Carol Mendonça)

Em 28 de janeiro daquele ano, no Festival de Verão de Sergipe, ela se apresentou pela última vez. Na despedida, discutiu com um policial. Foi acusada de desacato à autoridade, levada à delegacia e liberada em seguida.

Seu último álbum de canções inéditas em estúdio saiu em abril de 2012. “Reza” era, então, seu primeiro trabalho de inéditas em nove anos. A faixa-título foi a música de trabalho, definida por ela como “reza de proteção de invejas, raivas e pragas”.