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Pedro Cardoso estreia comédia stand-up e fala sobre os limites do humor

Por CADERNO B
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Publicado em 05/06/2023 às 20:23

Alterado em 05/06/2023 às 20:40

Pedro Cardoso estreia 'O Recém-Nascido', em São Paulo Foto: Helen Duruth

Pedro Cardoso, que vive atualmente entre Portugal e Brasil, estreia no próximo dia 10, O Recém- Nascido, uma comédia stand-up, no Teatro Morumbi Shopping, São Paulo. Ator, escritor, humorista desde os anos 80, ficou conhecidíssimo por interpretar, durante 15 anos, o personagem Agostinho Carrara, do seriado A Grande Família. Cardoso, que compartilha nas redes sociais suas opiniões sobre política e outros assuntos que despertam seu interesse, tem chamado atenção com seus textos críticos e densos, escritos com coragem e “sem papas na língua”, no sentido de não se esquivar de assuntos mais polêmicos, como podemos observar em um de seus textos no Instagram: “Eu nunca gostei de Stand Up comédia. Me desagradava a ficcionalização da primeira pessoa. O ator se expressa na terceira pessoa, que é o personagem...”

Jornal do Brasil: Por que você optou em fazer um stand-up, se não gosta tanto do formato?

Pedro Cardoso: Eu quis me valer da moda dos stand-ups para me diferenciar deles ao falsear o meu. O personagem é uma liberdade intelectual. Personagens que fiz disseram ofensas que eu jamais disse e nem diria. Representar a violência é um modo de denunciar a atuação dela na sociedade; e não de enaltece-la.

Atualmente, é bastante comum o questionamento sobre os limites do humor, no que se refere a temas que podem ser ofensivos para uma determinada pessoa ou para um grupo específico. Em sua opinião, pode-se fazer piada sobre qualquer tema ou deve-se dosar o tom para que determinados grupos não se sintam ofendidos?

Acredito que sim, pode-se fazer piada com qualquer tema; o que não se pode fazer é qualquer piada. Antes: qualquer limite que se queira aplicar à comédia dever-se-á aplicar, igualmente, à "seriedade" em qualquer dos seus modos: discursos dramáticos, épicos, científicos, filosóficos, jornalísticos, religiosos...

No que tange à ética, a comédia não difere em nada da "seriedade". No entanto, a comédia (ou o humor) é mais severamente vigiada; e, para se prevenir desta maior severidade, responde irresponsavelmente, exigindo para si uma liberdade absoluta.

Pergunto, então, a razão de haver maior temor da comédia do que da "seriedade". E encontro resposta na própria natureza da comédia.
A comédia é divertimento que se produz por uma observação, e um comentário moral posterior, da psicologia do ser humano. O assunto da comédia é a própria natureza do funcionamento da psicologia em alguém (confinado em seu arquétipo social para fim dessa observação UM PERSONAGEM).

A comédia, ao adentrar os terrenos da intimidade do mecanismo das pessoas identifica suas falhas, descaminhos, ilusões, prepotências, vaidades, humildades falsas ou sinceras etc., desnuda o ser humano da proteção que a sociabilidade lhe confere. A comédia revela o que segue escondido na vida cotidiana.

Portanto, por sua própria natureza, a comédia é sempre crítica ao PODER.
Todo projeto de poder é autoritário; e todo autoritarismo intenciona imobilizar o pensamento num conjunto de certezas que lhe confirme a razão de ser autoritário.

A comédia, ao iluminar as vicissitudes da psicologia, ilumina, por consequência, as imperfeições das certezas políticas e morais. A comédia move o pensamento. E o faz de modo irresistível, pois trafega para além do consciente, se esgueirando pelas regiões insondáveis do inconsciente. Daí, a meu ver, o temor que as pessoas afeitas ao PODER têm da comédia. A comédia é insubmissa.

Por isso, respondo afirmativamente à pergunta: sim, podemos observar qualquer tema pela comédia; o que não podemos é dizer qualquer agressão caluniosa apenas porque estaríamos sendo cômicos, na pretensão de que à comédia tudo seria permitido.

Eu acho que o limite de liberdade que impomos à comédia é o mesmo ou deveria ser que impomos à "seriedade"; que é, ao fim, a proibição de faltar com a VERDADE.
Quem falseia o mundo para que ele se conforme aos seus interesses, mente; seja numa comédia ou qualquer outro discurso da "seriedade": dramático, épico, científico, filosófico, jornalístico, religioso...

Não vejo, portanto, que exista uma questão ética específica da comédia. E aceitar que exista, nos distrai do que ao PODER não interessa que falemos, que é a VERDADE.

O que existe, penso eu, é uma questão ética e ontológica sobre a VERDADE. O crime, eventualmente cometido num discurso cômico, não é crime por ser engraçado (o que é sempre absolutamente subjetivo) mas por faltar com a verdade. O crime é sempre a mentira, em qualquer discurso; cômico ou "sério".

O Brasil, este cercadinho jurídico acidentalmente acontecido, onde uma variedade desconhecida de ancestralidades é obrigada a conviver, caminha, a meu ver, para o fracasso de mais uma tentativa democrática. Já vivemos hoje acossados por um fundamentalismo religioso desonesto cujo projeto é substituir a constituição pela Bíblia; segundo leitura acrítica, e acientífica e, mesmo, areligiosa deles. É um projeto de PODER para enriquecimento do grupo, nada além disso. Paralelamente, outras correntes valem-se de outras identidades coletivas para tentar implementar outros autoritarismos; e eles vão se unindo e se desunindo na medida de seus interesses momentâneos.

Diante dessa escalada autoritária já em curso, a comédia será cada vez mais severamente vigiada e, inclusive, criminalizada. Então, guardada a atenção para com a VERDADE, que é obrigação de honestidade de todo e qualquer discurso cômico ou "sério"eu advogo em favor da plenitude da comédia; reconhecendo-lhe por limite apenas a VERDADE.

A verdade é uma visão de mundo, uma compreensão da realidade; a verdade se obtém pela observação e análise; a verdade nos advém da ciência ou da experiência ou do que nos é contado (como, por exemplo, no jornalismo).

A VERDADE é uma inquietação sempre oscilante.

Uma interrogação sobre a VERDADE é o trabalho intelectual que nos aproxima da LIBERDADE.
A nenhum projeto de poder interessa uma investigação sobre a VERDADE. Daí todos os autoritarismos nos empurrarem para falsas relevâncias sobre os limites da comédia. O limite da comédia é a VERDADE, e nenhum outro. O que legitima o cômico é a verdade que ele expressa. No interroguemos sobre a VERDADE, pois.

Caso, por acidente, a observação cômica doa em alguém, a dor já existia antes de a comédia a ter tocado. É um acaso da vida, do qual o comediante não tem como defender quem ele atinge. Há regiões dolorosas em toda pessoa, mas não são isentas da comicidade que nelas um outro observa.

Quanto ao cômico que tem por assunto grupos identitários, penso que é legítimo revelar-lhes os traços de identidade que, são, comumente, enfeitados de falsa perfeição. Falar de todos não é falar de cada um. Ofende-se quem toma para si algo que foi dito sobre todos. Eu sou carioca. Se alguém debocha do modo vaidoso, afetadamente arrastado, de falar dos cariocas, não me ofendo. Reconheço em mim a coletiva vaidade ridícula. Nessa hora, sou um entre muitos. Não é de mim que se fala, mas de todos. Eu pertenço a "ser carioca", mas não me esgoto em sê-lo. Por ser mais do que apenas carioca, posso aceitar que se ria de minhas imperfeições coletivas; e rio junto com quem me revela o quanto sou coletivamente patético.

Na comédia, há o imenso risco de mentir sobre todos do mesmo modo que se mente sobre uma pessoa isolada; e nessa mentira carregam-se preconceito e inverdades.

Por fim, trata-se de conhecer a VERDADE sobre o tema que o cômico se debruça. Se verdadeiro for, dizê-lo crime não é. Talvez seja incômodo. Entretanto, mais incomodado com a comédia sente-se quem está apegado ao PODER.