Aldir Blanc e o tesouro escondido na caverna da infância
O saudoso compositor faria 78 anos nessa segunda-feira (2)
'Eu vou pro Estácio, mermão! Pensa que é fácil? Né não.
No tempo do lotação já era ruim, hoje então...'
O samba foi gravado em 1996, no disco que comemorava os 50 anos do compositor. Em 2026 (que está logo ali, ele estaria completando 80 anos). Quase meio século antes dessa data, ainda no tempo do bonde sempre logado, o futuro grande cronista das ruas e dos bairros do Rio de Janeiro e poeta consagrado da MPB que o Brasil perdeu em 2020 – ano em que muitos partiram, no “rabo de foguete” acionado pela pandemia do Covid 19 – saboreava a inocência no bom e velho Estácio de Sá.
No Estácio de Sá Aldir Blanc viveu até os quatro ou cinco anos na Rua Santos Rodrigues, uma transversal (do tempo?) da lendária Maia de Lacerda – onde nasceu, se criou e viveu até morrer o não menos lendário Alceu, que era seu pai e também o Ceceu Rico de suas crônicas. Entre o Estácio, Vila Isabel, a Tijuca e a Muda correram, sempre margeando o Rio Maracanã, as veias de Aldir Blanc.
'Há quem não se importe, mas a Zona Norte
É feito cigana, lendo a minha sorte.'
Chegando aos cinco ou seis anos de idade, Aldir chegava também à Vila, de mãos dadas com a mãe, Dona Arlete, e com a mãe da mãe, Vovó Noêmia. À frente, com o indefectível maço de Lincoln num bolso e o programa onde lia a sorte dos cavalinhos de corrida, o intrépido Seu Alceu. Tempos depois, o filho tentou esclarecer algumas datas e fatos daqueles dias, para um inventário de infância que escreveu em homenagem ao bairro do Noel Rosa, ouviu do pai a seguinte resposta:
– Como é que, a essa altura do campeonato, você quer que eu me lembre de uma merda dessas?!
'Eu vim da Maia Lacerda
E essa merda faz parte de mim.
Taí minha herança, e dela não abro mão...'
No bairro poético e boêmio, o menino foi morar na Rua dos Artistas, estava em casa. E numa casa com quintal cheio de árvores frutíferas – pertinho da morada do mestre Benedito Lacerda:
– Da minha casa, eu ouvia a flauta tocada na casa dele – contou, em depoimento ao jornalista Roberto M. Moura, um dos amigos mais queridos e perdidos, como Paulo Emílio Costa Leite, Marco Aurélio Bagra e mais alguns.
O quintal servia para reunir amigos e parentes em torno das panelas e dos pratos, do radinho de pilha contando o jogo do Vasco, então Expresso da Vitória (“Sabará na ponta direita do templo...”, já cantou e orou em um poema), das garrafas, muitas garrafas.
A poesia já morava ali, à sombra das goiabeiras, laranjeiras, bananeiras, mangueiras, dos pés de abiu, sapoti, limões-bravos; a boemia só veio em seguida.
'Vim do botequim,
Chamaram por mim
Na manhã...'
A infância na Vila, que o poeta descreveu como uma febre (“Vila Isabel é a febre de viver, que não passará enquanto eu respirar”) – pelo menos até os 13 ou 14 anos, quando voltou a morar no Estácio – desvenda o tesouro da caverna na obra do compositor:
“Tá quase tudo lá, vem quase tudo de lá, e nada se perdeu ou foi desperdiçado”. O “asmático rondando pelo corredor”, as hemoptises, os palavrões, as brigas e confraternizações em família, o amor desgovernado pedindo cama na rua, os feudos, as frases de efeito, as farsas e o futebol, os funcionários de plantão e os desempregados por opção, dentes estragados, os butecos com as declarações mais sublimes ou os desabafos mais escatológicos:
'Piada suja, bofetão na cara,
E essa vontade de soltar um barro.'
Pensa que Aldir Blanc viveu só de brisa, melodia e poesia? Nada disto. Teve estudo, tudo certinho. Primário na Escola Municipal Barão Homem de Mello, ginásio no tradicionalíssimo Colégio São José, curso superior na Faculdade de Medicina e Cirurgia, com estágio no Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro – como médico, claro. De poeta e de louco, ele teve muito mais do primeiro.
Nas letras de canções, nas crônicas, nos poemas Aldir cantou dos tesouros escondidos em cavernas da infância às dores e delícias da maturidade, sempre “apostando na juventude”, usando o humor até para se queixar das vicissitudes:
–Tá tudo um mar de merda, claro. Mas continuarei me recusando a mergulhar nele – me disse, num dos últimos telefonemas.
'A porcelana e o alabastro na pele que eu vou beijar
O escuro atrás do astro na boca que me afogar
Os veios que há no mármore nos seios de Conceição
E desafeto mais paixão e porque sim e porque não.'
No ano em que perdemos tantos (2020), o Brasil perdeu um grande criador. Perdi um amigo. A poesia perdeu um amante dedicado.