Tom Jobim na Academia Brasileira de Letras

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Por JOSÉ MARIO PEREIRA

Tom Jobim

Numa roda de boa prosa que se formou logo após recente conferência na Academia Brasileira de Letras, percebi que mesmo acadêmicos altamente informados sobre a história da instituição desconhecem, ou apagaram da memória, o fato de que Tom Jobim chegou a se inscrever como candidato a uma vaga na instituição.

Como isso se deu, e mais alguns pormenores sobre o músico ilustre, é o que passo a contar agora. Com frequência, em conversas com ele na Plataforma, churrascaria da Zona Sul carioca aonde ia quase todo dia quando não estava viajando, Tom se referia à ABL, afirmando que no futuro pretendia se candidatar. Certa vez, contou que Austrégesilo de Athayde, presidente da instituição por 34 anos, num encontro no Clube Caiçaras onde também estava Drummond, tentara seduzir os dois em relação à Casa de Machado de Assis. O poeta mineiro riu e desconversou, mas Tom respondeu com um “mais adiante, quem sabe?”; o fato é que a perspectiva de se tornar “imortal”, desde então, passou a exercer atração sobre ele.

Alguns dos amigos que costumavam almoçar com Tom na Plataforma, entre os quais José Lewgoy, Tarso de Castro, Fernando Balbi e João Ubaldo Ribeiro, às vezes riam quando ele mencionava a possibilidade de se candidatar. Todo mundo pensava que apenas se divertia, mas Tom reafirmava que falava sério; contava que seu pai, Jorge Jobim, tivera amigos na ABL, e que gostaria de verdade de fazer parte da agremiação cultural à qual pertenceram duas de suas maiores admirações: Manuel Bandeira e Guimarães Rosa

A ocasião surgiu quando da morte de Austregésilo, em 13 de setembro de 1993. Encontramo-nos lá na Plataforma, mencionei a oportunidade da vaga, e ele reagiu com visível interesse, pedindo mais informações a respeito. Disse-lhe então que faria uma sondagem junto a um acadêmico respeitado, com poder de articulação, e citei o nome do pernambucano Marcos Vinicius Vilaça, a que Tom reagiu com simpatia. Perguntei se iria à Plataforma nos próximos dias, ele confirmou, e tratei de localizar Marcos Vilaça para acertar uma conversa telefônica entre os dois. De Brasília, onde vivia e era ministro do Tribunal de Contas da União, ele acolheu com entusiasmo a possibilidade de ver Tom candidato, e combinou comigo o dia em que deveríamos esperar um telefonema seu.

Na data marcada, assim que me aproximei da entrada da Plataforma, por volta do meio-dia, vi Tom de chapéu panamá, vindo das bandas da Cobal do Leblon, com o Jornal do Brasil dobrado na mão e uma bolsa de couro a tiracolo. Fomos para a sua mesa cativa, a primeira à direita, ao lado do balcão onde ficava um telefone PABX que ele atendia com frequência. O local na verdade funcionava como uma espécie de escritório informal do Tom. Logo apareceu um garçom, ele pediu o costumeiro chopinho curto, e pouco depois, na hora combinada, o telefone tocou: fomos avisados de que havia alguém procurando
por mim e pelo Tom. Atendi; era mesmo Marcos Vilaça, e então passei o telefone para o provável candidato. A conversa deixou o maestro feliz. Ao desligar, contou-me que o acadêmico reafirmara o que me dissera antes: votaria em Tom, caso se apresentasse, e trabalharia por sua vitória.

Embora não fosse amigo íntimo de Tom Jobim, ele sempre me cumprimentava com simpatia por conta de minha presença frequente na Plataforma, e ao fato de termos vários amigos em comum. Afora isso, era homem sem pose, de trato fácil, generoso, e sabia, pelas nossas conversas, que eu mexia com livros, tinha uma razoável intimidade com a literatura, e conhecia quase todos os integrantes da ABL.

Tom adorava contar histórias, ouvir as novidades da política e da sociedade, e dar boas gargalhadas. Um assunto ao qual retornava com frequência era história de passarinho: sabia o nome de muitos, dissertava sobre o tamanho deles, as singularidades da cor e do canto, e dos preferidos citava até o nome científico.
Uma de suas grandes admirações era o naturalista Augusto Ruschi, cujos livros sobre beija-flores e orquídeas apreciava. Cheguei a lhe dar pelo menos dois sobre pássaros brasileiros que descobri em sebos. Tom também tinha afeição por dicionários, por palavras curiosas que catava neles, e por etimologia. Nisso
lembrava Guimarães Rosa, que, em resposta a uma enquete promovida por Antonio Olinto, em O Globo, escolheu “murucututu”, nome de uma corujinha da Amazônia, como a mais bela palavra da língua. No campo da poesia brasileira, sou testemunha de que o maestro sabia de cor passagens da “Canção do exílio” (Gonçalves Dias), de “O caçador de esmeraldas” (Olavo Bilac), além de trechos da poesia de Alberto de Oliveira, Vinicius e Drummond.

Ao notar que, além de privar da amizade de acadêmicos, eu também tinha noções sobre o ritual que antecede uma eleição, e de como os candidatos devem se portar durante a disputa, Tom vez por outra tocava no assunto comigo, e assim, quando surgiu a oportunidade de se candidatar, acabei funcionando como um consultor de primeira hora. No dia 24 de setembro de 1993, uma sexta-feira, ele me procurou por telefone em casa. Informado de que eu não estava mas poderia ser localizado em outro número, Tom o anotou e ligou. Eu me encontrava na residência do professor Djacir Menezes, cuja filha, Vleuda, me
pedira para examinar a biblioteca do pai com vistas à produção de um parecer que embasasse a sua venda ao governo do Ceará. Foi ela quem atendeu à chamada e veio me avisar, um tanto impressionada, que “o Tom Jobim está no telefone querendo falar com você”.

Assim que eu disse “alô”, Tom respondeu que precisava falar comigo com urgência, pois desejava resolver o assunto da inscrição ainda naquele dia, e marcou comigo na Plataforma às 13h, alertando que poderia se atrasar um pouco porque estava ensaiando para o show em sua homenagem no Free Jazz Festival,
que aconteceria horas depois no Hotel Nacional, em São Conrado. Quando cheguei à churrascaria ele já estava numa mesa com cerca de 10 pessoas, entre elas Gal Gosta e Gilda Mattoso, sua empresária, e última mulher de Vinicius de Moraes. Fui até lá, cumprimentei-o, Tom disse “já vou”, e então me dirigi para a mesa onde normalmente se sentava, vazia naquele momento. Logo depois ele veio se reunir comigo. Contei de minhas últimas conversas com Vilaça; este alertara que a inscrição deveria ser feita o quanto antes, não só para confirmar sua disposição de concorrer mas também para inibir outras candidaturas.

“Como fazemos isso?”, perguntou. Eu já estava com os termos da carta de inscrição, que me haviam sido passados por Vilaça; só faltava encontrar uma máquina de escrever. Tom então chamou Garrincha, o maître a quem era muito afeiçoado; este entrou em campo, e pouco depois trouxeram do escritório de
Alberico Campana, o dono da churrascaria, uma Olivetti portátil. Assim pude datilografar a carta com cuidado, enquanto Tom saboreava um chopinho, ao mesmo tempo em que examinava a lista que lhe passara com os nomes, endereços e telefones de todos os acadêmicos. Terminada a redação, ele assinou
o papel, e hoje me arrependo de não ter produzido uma cópia extra dessa carta para tê-la agora, autografada, em meu arquivo.

Tom quis saber, então, se teria de pagar a inscrição; eu disse que achava que não, mas se isso fosse necessário eu resolveria. Comi uma salada enquanto conversávamos sobre outras providências a tomar, e a seguir nos despedimos: ele voltou para a roda dos amigos envolvidos com o show do “Tributo a Tom”, e por volta das 15h peguei um táxi rumo à ABL. Enfrentei trânsito ruim, temi chegar à Academia quando o expediente já estivesse encerrado, mas afinal cumpri a missão: na sede da Av. Presidente Wilson, entreguei a carta de inscrição de Tom a d. Maria Carmen de Oliveira, a secretária executiva, na sala do térreo onde hoje os eleitos se postam para receber os cumprimentos no dia da posse.

Na semana seguinte encontrei Josué Montello, então presidente da ABL, e este se dirigiu a mim, irônico: “Você, que está envolvido na articulação para eleger o Tom Jobim, trate de conseguir a doação de um bom piano para a casa”. O compositor de “Águas de março” o visitaria dias depois, em sua sala no prédio
novo, ao lado do Petit Trianon. Ao ser levado para conhecer o auditório no segundo andar, e lá se deparar com um piano que acabara de chegar de Campos, Tom quis testar sua afinação, e tocou por alguns minutos para Josué e d. Carmen. Ele estava feliz por ter se inscrito, e animado para iniciar os necessários contatos como candidato, quando surgiu um imprevisto: Antonio Callado, desconhecendo a pretensão de Tom, também se inscrevera à vaga, coincidentemente no mesmo dia.

Entre os que estimularam o romancista de Quarup a concorrer estavam Nélida Piñon e Herberto Sales; no que se refere a Tom, um dos entusiastas de sua candidatura, com quem cheguei a trocar impressões, foi Darcy Ribeiro, também ligadíssimo a Callado. Tom me contou do telefonema que dera para Jorge Amado, afirmando que procuraria se eleger em homenagem ao pai escritor, mas que, se não fosse possível, sempre teria o consolo de estar no time de Jorge de Lima e Mário Quintana, que tentaram e não conseguiram. Jorge reagiu assegurando que não só votaria nele como seria seu cabo eleitoral, mas, quando dessa conversa, o romancista de Gabriela, cravo e canela ainda não sabia da presença de outro amigo na disputa, o Callado. Ou seja, criara-se, de forma não deliberada, uma situação que, caso fosse mantida, colocaria em polos opostos dois bons companheiros. Ao saber que Tom se inscrevera, Callado pensou em desistir, mas o músico adiantou-se: por considerar que a prioridade era do escritor, tratou de formalizar, em combinação com Josué Montello, sua retirada da disputa.

A saída do páreo, no entanto, não arrefeceu o interesse de Tom pelo desenrolar da campanha de Callado à sucessão de Austrégesilo na cadeira nº 8. Eu o mantive informado de todos os passos do escritor rumo à imortalidade acadêmica, e Tom ficou verdadeiramente contente ao saber, em 17 de março de
1994, que Callado se elegera com 37 votos.

A vida continuou, e nossas conversas esporádicas também. Às vezes eu entrava na Plataforma e o via sozinho, tomando um chope curto, fumando um charuto Montecristo, com ares de meditação. Então passava adiante, esperando hora melhor para trocar alguma prosa com ele. Numa das vezes em que me
convidou a sentar, contei-lhe que estava para publicar as memórias de Roberto Campos, e Tom, para minha surpresa, reagiu assim: “Eu gosto muito dele...”. Confesso que o olhei com certa incredulidade, pois não visualizei de imediato qualquer ligação entre ambos, mas ele falava sério. No seu entender, em
novembro de 1962, em Nova York, a ação do diplomata e economista fora providencial para solucionar vários problemas que poderiam ter comprometido gravemente a realização do famoso show de bossa nova no Carnegie Hall, de tanta importância para firmar o interesse dos americanos pela música do Brasil.
Dias depois contei essa conversa a Roberto Campos, que, risonho e atento às notícias que lhe dei do Tom, lembrou que, em dezembro daquele mesmo ano, também interferira em prol de outro concerto do qual o músico participara, em Washington. Em setembro de 1994, quando saiu A lanterna na popa, Roberto Campos pegou um exemplar e nele fez uma dedicatória simpática para Tom. Quando lhe entreguei o livro, Tom, levantando o volume de 1.417 páginas como se fosse um halteres, me afirmou que pretendia lê-lo inteiro.

Semanas antes de sua última viagem aos Estados Unidos, em 1 de dezembro de 1994, lembro-me de tê-lo visto, na Plataforma, em animada conversa com o ator Antônio Pedro, a quem estimava. Até falaram de se encontrar na manhã seguinte no Arataca, restaurante de comida típica do Norte que funcionava na
Cobal do Leblon, quase em frente à churrascaria. Tom aparentava estar bem de saúde, embora um pouco acima do peso. Ao recordar esse encontro que mais tarde se revelaria como o derradeiro – o que, além de convocar a tristeza e a saudade, chama atenção para a nossa fragilidade essencial –, me vem à mente o
parágrafo inicial de um necrológio de Machado de Assis sobre um grande intelectual de seu tempo: “A última vez que vi Eduardo Prado foi na véspera de deixar o Rio de Janeiro para recolher a S. Paulo, dizem que com o gérmen do mal e da morte em si. Naquela ocasião era todo vida e saúde. Quem então me dissesse que ele ia também deixar o mundo, não me causaria espanto, porque a injustiça da natureza acostuma a gente aos seus golpes; mas, é certo que eu buscaria maneira de obter outras horas como aquela, em que me detivesse ao pé dele, para ouvi-lo e admirá-lo”.

Do velório de Tom Jobim no Jardim Botânico, local que tanto amava, lembro-me bem da chegada de Chico Buarque, seu parceiro musical a partir de 1968, com a mulher, Marieta Severo, e uma de suas filhas, ele andando rápido, de rosto cerrado; e do filho de Tom, João – que viria a falecer, em julho de 1998, aos 19 anos, vítima de acidente automobilístico – sozinho e desolado, sob uma árvore. Aquele foi um dia de tristeza perversa para todos que conheciam e admiravam Tom Jobim. Nas semanas que se seguiram, muita gente evitou a Plataforma porque era doído entrar lá, ver a mesa onde o grande artista se reunia
com os amigos para tomar chope, degustar seu whisky predileto — White Horse 12 anos —, ou dar baforadas num Montecristo, e não mais encontrá-lo ali. Na verdade a morte de Tom, aos 67 anos, marcou o começo do fim da Churrascaria Plataforma, ponto de encontro de tanta gente bonita, alegre e inteligente nas décadas de 1980 e 1990.

Voltando à ABL: numa sessão logo após a partida de Tom, seu amigo João Ubaldo Ribeiro fez um rápido pronunciamento, pedindo que fosse aprovada “moção de aplauso e voto de pesar pela morte de um dos maiores artistas brasileiros do nosso tempo”; e mais não conseguiu falar porque se emocionou. Josué Montello observou, então, que mais cedo ou mais tarde o admirável artista teria encontrado o caminho da ABL; e Jorge Amado, figura raríssima na Casa, afirmou que “não havia nada melhor e maior no Brasil do que Tom Jobim”. Mas foi Herberto Salles quem cunhou a frase mais contundente: “Esta morte
inesperada foi uma sacanagem de Deus”.

 

José Mario Pereira é editor da Topbooks