CADERNOB
As impressões digitais e analógicas de Flavio Colker
Por CAL GOMES
Publicado em 22/03/2025 às 11:28
Alterado em 22/03/2025 às 11:34

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Do avô Isaac Colker, judeu russo que chegou ao Brasil no início do século passado, Flavio herdou o sobrenome; do pai, Adolpho, maestro, arquiteto e designer, a sensibilidade harmônica, equilíbrio das formas e a estética, às vezes rígida, às vezes flexível, que o auxiliaram na captação visual de imagens tão importantes em seus trabalhos. Com a irmã Deborah Colker, dançarina de imenso destaque no cenário artístico brasileiro, surgiram parcerias através de sua visão da arte fotográfica como, também, atividade com forte contexto teatral. Mas foi com o primo, o músico Léo Gandelman, ambos adolescentes, que, em 1968, teve o primeiro contato com a fotografia, aos 12 anos, quando, juntos, na casa da avó de Léo, montaram um laboratório onde aprenderam a revelar os primeiros filmes.
Mais tarde, na metade dos anos de 1970, aprofundou-se na experiência com revelação e começou a fotografar moda, valendo-se do conhecimento autodidata adquirido nos livros e revistas especializadas até começar a estagiar no estúdio do famoso fotógrafo espanhol-luso-brasileiro, Antônio Guerreiro, como laboratorista e a aprender a utilizar flashes.
Em seguida, fascinado pelas capas dos álbuns de rock criadas pela Hipgnosis, mitológico estúdio inglês de design que produziu trabalhos para bandas como Led Zeppelin e Pink Floyd, resolveu trilhar esse caminho. Começou com Neuzinha Brizola, filha do então governador do Estado do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. Depois, para Léo Jaime. Durante os anos de 1980 e 1990, foi autor de inúmeros trabalhos para artistas e grupos, além de dirigir seus primeiros videoclipes para a cantora Marina Lima e a banda Kid Abelha.
Pai da carioca Eleonora, do primeiro casamento, e de Otto, do segundo, nascido no México, Flavio Colker, mesmo sob uma forte gripe, conversou longamente com o Jornal do Brasil sobre a carreira, a fotografia, sua visão própria e peculiar de arte e cultura em geral, sobre os rumos da tecnologia em sua profissão e seus anos no México, país pelo qual se apaixonou e aprendeu a admirar.
JORNAL DO BRASIL: Você morou alguns anos no México. Como foi essa experiência?
Flavio Colker: Entre as primeiras fotos que me lembro de ter visto ainda muito jovem estavam as imagens que Edward Weston fez no México. As composições são perfeitas e os tons do preto e branco, a nitidez da luz eram o meu ideal. Eu revelava os negativos ajustando os tempos no revelador, tentando encontrar aquela qualidade e não conseguia. Quando fui para o México, durante a pandemia, entendi que, nas fotos do Weston, havia uma luz e arquitetura muito especiais. A luz é perfeita. Eu enxergava imagens acabadas, prontas a ser fotografadas em uma frequência que eu nunca havia experimentado. Não consigo formular uma explicação racional para isso. Talvez a natureza vulcânica de lá faça com que as formas tenham viço ou a herança estética dos impérios pré-hispânicos mais a herança da pintura espanhola. A cornucópia de imagem me ligava ao México como se finalmente tivesse chegado a uma terra prometida. Observei como a cultura tem prestígio ali. E como usam a cultura como riqueza. A cidade do México tem museus para todos os lados. O museu de arte contemporânea funciona dentro da Universidade Federal, que é visitada por gente do mundo inteiro. A cinemateca é um complexo cultural com doze salas de cinema, sala de exposições, livraria e restaurante. Morei numa cidade pequena, San Miguel de Allende, onde havia três escolas de arte recebendo gente do mundo todo. O Rio de Janeiro tem uma escola de arte muito boa, conhecida, respeitada, onde mexicanos vem estudar, EAV, no Parque Lage. E não é que abriram um restaurante para turistas ali, tomando o espaço de alunos e professores e desmerecendo a escola? Escritores como Gabriel Garcia Marquez e Roberto Bolaño escreveram suas primeiras obras fundamentais na cidade do México; através de bolsas de instituições mexicanas. Escritores de países latino-americanos são convidados a lecionar na Universidade Federal de lá. Por que um país consegue tratar bem a arte? Porque sabem usá-la, política e financeiramente, como um capital, uma riqueza.
Cinquenta anos se passaram desde que você se tornou um fotógrafo. Como consumidor e profissional, como você analisa a evolução da fotografia como produto e arte?
Observo a multiplicação da imagem através dos computadores e celulares, não só como fotos tiradas e postadas, mas a própria interface dessas máquinas como imagem. Vejo a fotografia como um vírus em uma espécie de profecia de transformação da civilização. A fotografia, ou melhor, a imagem, fragmenta o espaço e o tempo. Reduz o espaço e o tempo. Se você olhar a pintura do Bruegel de uma cena de aldeia, ali o espaço é vasto e o tempo, largo; cabe toda a aldeia e todas as ações de um dia de feira. A fotografia fragmentou tudo em frações de segundos e o espaço é recortado pelo ângulo da lente. A nossa consciência é influenciada por esses cortes. A fotografia também contrastou o mundo. Ela é feita de contraste, muito mais do que a pintura. Isso significa uma consciência mais contrastada, exasperada, sem meio termo, entre a claridade e a sombra. Imaginávamos um futuro de transformação biológica e temos um presente futurista, onde as redes sociais são fantasmas da realidade. E tudo devido a infiltração da imagem na vida. A fotografia é fantasmagórica. O mito de Narciso já havia nos prevenido contra a imagem: a fascinação por ela nos levaria a substituição da vida pelo fantasma.
Os smartphones e as redes sociais são aliados na massificação da fotografia digital. Na produção e na divulgação. Doze anos atrás, quando tanto um quanto outro ainda estavam em processo de afirmação e consolidação, você disse em uma entrevista que via com bons olhos a chegada da tecnologia digital na área fotográfica. Muitos profissionais do setor criticam e se incomodam com o que eles afirmam ser a banalização da fotografia por causa da manipulação da imagem facilitada pela evolução tecnológica. Como você enxerga essas críticas?
Eu vi com bons olhos a tecnologia digital na fotografia por dois motivos. Primeiro, as cores são muito mais controláveis no digital. Os negativos de cor e slides têm gamas de cores reduzidas. Para cenas de azul, deve-se usar tal filme, amarelos pedem outro filme e por aí vai. E você não pode influenciar, transformar a cor no filme. É uma tecnologia limitada. A conservação da fotografia analógica de cor é complicada. Com o digital eu passei a pensar as cores porque eu podia chegar a resultados próximos ao que eu via. Eu uso o photoshop apenas para temperar as cores. Quanto à banalização, a fotografia tem a vocação para se espalhar, para ser banal. Sendo assim, ela lida muito bem com a banalidade que é determinante na nossa civilização. Os artistas criaram a pop art para poder representar a banalidade e, francamente, ela não é nenhum pecado. A banalidade é leve e muito do sublime das nossas emoções é expresso na banalidade. Basta ver um filme de Eric Rohmer ou Ozu, dois artistas do sublime que nos mostram a dignidade no banal. O Nietzsche observou bem, muitas vezes o que se quer profundo é só uma água rasa e turva.
Os anos de 1980/1990 foram expoentes na fotografia publicitária, de moda e do mercado fonográfico. Você esteve entre os profissionais mais requisitados, especificamente, para a fotografia de artistas da área musical, para capas de discos etc. Como encarou essa transformação da mídia digital musical, que atingiu seriamente as gravadoras e que, consequentemente, fez desabar a produção, primeiro dos discos de vinil, depois, dos CDs, e, por tabela, alcançou a produção fotográfica para o setor?
Eu não entendo de problemas de mercado. Tecnologias de circulação de música e imagem, usadas pelo mercado, foram substituídas por outras que modificam o acesso à arte e o pagamento desse acesso. É algo gigantesco em movimento. Eu trabalhei com prazer e alegria em capas de disco e depois em videoclipes, que ampliaram em muito a imaginação, a produção de imagem, na indústria musical. Os videoclipes melhoraram a qualidade de imagem exibida na tv e influenciaram as narrativas no cinema. Os clipes revisitaram o cinema pxb, o cinema mudo, os melodramas dos anos 1950 trazendo uma riqueza exuberante para o entretenimento e formas novas de produção para tv. Produtoras como a Conspiração Filmes apareceram. Por outro lado, os videoclipes criaram barreiras econômicas porque são caros. Muito mais caros do que uma fotografia de capa de disco. Os videoclipes brasileiros não tinham acesso ao acabamento dos europeus e americanos. Toda espécie de barreira e separação é ruim porque humilha quem foi separado e a arte luta contra a humilhação. A pobreza não nos torna necessariamente infelizes, mas a humilhação torna a vida miserável.
Você teve, no início da década de 2010, no MAM de São Paulo, uma exposição permanente do seu trabalho muito elogiada. Aqui no Rio de Janeiro, as expectativas são que, em 2026, o novo Museu da Imagem e do Som, localizado em Copacabana, finalmente seja inaugurado depois de anos de obras paradas e que, depois de muitas complicações políticas e administrativas, foram reiniciadas. Você acha que o interesse do público por museus, espaços culturais, galerias de arte, no meio de tantas banalidades e futilidades, insufladas pelas mídias e redes sociais, continua forte, intacto?
Eu observo que a digitalidade, a rede virtual, a banalidade, produzem mais interesse pela tradição! É elementar. Dialético. E, também, uma dinâmica da riqueza: a arte é a forma mais intensa e concentrada da riqueza produzida pelo homem. O artista produz muito mais riqueza, se medida em termos financeiros, do que qualquer outra atividade humana. O valor de uma pintura, feita por um homem com tela pincel e tinta, cresce vertiginosamente. O que muitos interpretam como um exemplo de ganância sem sentido eu interpreto como valor incomensurável do trabalho do homem. Nada vale mais do que o trabalho de um homem. O museu é o lugar onde vamos aprender o nosso valor, de homem, mulher, brasileiro ou estrangeiro. É gigantesco. O público lota as feiras de arte, lota os museus. E a circulação de informação virtual aponta para ir ao museu e fazer uma selfie com a obra famosa. O museu é um lugar de dignidade onde o pobre, o artista que luta para existir, se tornou rico. A arte é uma Cinderela e o museu, sua carruagem.
As fotos que você fez para o álbum “Só Se For a Dois”, do Cazuza, em 1987, capa e encarte, na minha opinião, estão entre as mais bonitas para artistas brasileiros do meio musical. Eu vi nessa produção um Flávio Colker mais, digamos, teatral e cinematográfico. Cazuza está em movimento no ensaio. Com expressões mais fortes e dramáticas. Sua relação íntima, pessoal, com a sua irmã Deborah Colker, um nome forte no meio da dança, te inspirou nessas fotos ou em outras do seu portfólio?
Eu e a Deborah temos atração pelo movimento, pelo ritmo e dança. Nosso pai foi maestro, violinista, arquiteto e designer. A Deborah se inclinou mais na música e eu, na imagem. Fizemos videoclipes juntos e dirigimos juntos espetáculos de dança. Ela é um pouco mais intuitiva e eu tenho um gosto pela lógica, pela palavra e pelo cerebral.
No ano passado, o diretor Martin Scorsese fez duras críticas a excesso de efeitos especiais e em acabamentos digitais em muitas produções do cinema atual, afirmando que os filmes de personagens de histórias em quadrinhos não são cinema de verdade. Como você vê e analisa essas críticas?
Eu adoro a série “Guardiões da Galáxia”, escrita e dirigida por James Gunn, superprodução de ficção científica com atitude, cara, diálogos e humor underground. Três filmes com uma alma gigantesca e derivados de um universo parecido a Marvel. São filmes que movem o caldo de cultura em que vivemos e feitos desse caldo. Filmes com o humor autodepreciativo que nos permite amar a vida como ela é. Adoro “Thor Ragnarok”. Dito tudo isto, o Scorsese aponta algo importante: o cinema é feito de ação dos atores, fazendo personagens que agem em um mundo físico, real. Os atores interpretam abrindo espaço no mundo em que nós, humanos, vivemos. As técnicas de simulação fazem com que o ator aja em movimentos sem sentido para que suas imagens sejam depois coladas sobre cenários artificiais. Daí que essa potência do ator, que nos move junto com ele, agindo dentro do mundo físico, se perde. O cinema é dependente do mercado de entretenimento. São os ossos desse ofício. Cinema custa caro e o dinheiro toma decisões que destroem riquezas como você mesmo lembrou no caso das gravadoras. O cinema do ator, em que o ator gera a força da imagem e a paisagem de nosso mundo ganha valor transcendental, não pode nem deve ser substituído por animação computadorizada: a qualquer momento, um grupo de artistas contará uma estória tocante feita de silêncio, risada e lágrimas, apesar de todas as decisões de mercado
A inteligência artificial, pelo jeito, veio para ficar, com um sistema cada vez mais evoluído tecnologicamente e uma batalha crescente entre grupos que a dominam, principalmente as empresas americanas e chinesas. As críticas e os elogios à inteligência artificial se dividem. Qual a sua visão atual sobre o sistema e a percepção para o futuro?
A IA possibilitou algumas tomadas de “Ainda Estou Aqui”, pelo que sei, e o filme tem uma natureza neorrealista. Eu não uso IA. Comecei a pintar há 3 anos e estou gostando de estar entre ideias plásticas da renascença, idade média, barroco. Ao mesmo tempo, o Gringo Cardia, artista excepcional, adora IA. Daí evito pensar como oposição a essas maneiras de produzir imagem. Aliás, está na hora de abandonar as oposições, os contrastes; estão nos levando sempre ao impasse e à derrota. Chega. Vamos buscar a terceira margem do rio, do Guimarães Rosa; ela existe.
Quais os seus fotógrafos preferidos? Nacionais e estrangeiros.
São muitos. Amo a fotografia erótica do Araki. Dennis Stock, fotógrafo favorito de James Dean. Marcos Bonisson e sua balada do corpo solar. Luiz Braga me lembra Gauguin. Os retratos feitos por Bruce Weber. Helmut Newton, o surrealista que me mostrou onde se pode chegar na fotografia. Luiz Tripoli. Miro. O humor de Elliott Erwitt. Manuel Álvarez Bravo. Weegee! Paul Strand é sublime. A lista é imensa.