CAIO BUCKER
Deleuze: o filósofo da diferença
Por CAIO BUCKER, [email protected]
Publicado em 16/09/2021 às 09:43
A construção e exibição de imagens em movimento foi algo perseguido desde a Antiguidade. As sombras sempre exerceram fascínio nos seres humanos, o que rendeu inclusive a criação do teatro de sombras. Com o advento da fotografia, foi possível fixar a imagem numa superfície, seja ela papel, placa de metal ou vidro. A história do cinema está diretamente ligada à história da fotografia, e a própria etimologia da palavra cinema explica isso. Cinema é abreviação de cinematógrafo e significa “movimento gravado”. Os primeiros cineastas desenvolveram aparelhos para captar e projetar imagens em movimento, como a lanterna mágica, câmara escura que projetava através de lentes e luzes desenhos pintados à mão em vidros; o praxinoscópio, aparelho de formato circular onde as imagens sucediam-se dando a
sensação de movimento; o cinetoscópio, máquina individual onde se assistia filmes de curta duração, lançado em 1894 por Thomas Edison (1847-1931) nos Estados Unidos; e o cinematógrafo dos irmãos Auguste Lumière (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), considerados os inventores do cinema. O cinema inicialmente era visto apenas para fins documentais e para registrar através de uma câmara estática algum acontecimento diante da lente. Era chamado de “teatro filmado”. Posteriormente, utilizavam as câmaras para contar histórias, criar técnicas e narrativas.
Gilles Deleuze, filósofo francês do século XX, foi um dos principais a criar teorias sobre a imagem cinematográfica, e por conta disso, comecei uma pesquisa sobre sua obra e seus conceitos. Nascido em 18 de Janeiro de 1925, em Paris, desde sempre se mostrou contra o conservadorismo e o familismo burguês de sua família. Sua descoberta pelo pensamento filosófico se deu aos 14 anos, nas aulas de literatura francesa. Era leitor de Jean Paul Sartre, considerado um dos principais pensadores do século XX, até seu desapontamento com o autor após publicar “O existencialismo é um humanismo”, em 1946. Em 1948, tornou-se professor secundário no liceu de Amiens e grande inspiração para jovens aspirantes à carreira intelectual. É com singularidade que, em 1953, Deleuze se lança em seu próprio trabalho filosófico através da História da Filosofia, e publica o livro “Empirismo e Subjetividade”, sobre David Hume. Já observa-se um comportamento pela contramão da moda literária e filosófica, pois um de seus objetivos é reabilitar os esquecidos ou menos valorizados, mostrando outras possibilidades de pensamento. É como se fizesse os autores dizerem outras coisas que não estavam em suas obras. Me inspiro muito nele, e é o autor que escolhi para minha vida acadêmica, visto meu trabalho com teatro, cinema e a imagem, com essa pitada de reflexão filosófica que ronda meu ser desde sempre.
Em 1955, Deleuze é nomeado para o Liceu Louis-le-Grand, em Paris. Após um tempo sem publicar nada, publica “Nietzsche e a Filosofia”, em 1962; “A Filosofia Crítica de Kant”, em 1963; e “Proust e os Signos”, em 1964. No ano seguinte, o livro “Nietzsche” transforma o pensador alemão num modelo do que a filosofia de Deleuze viria a ser: artística e criadora. Em 1966, publica “Bergsonismo”. Em 1968, “Espinoza e o problema da expressão”, e sua tese “Diferença e Repetição”. Em 1969 lança uma de suas obras mais complexas: “Lógica do Sentido”. Sua primeira coautoria é publicada em 1972, com Félix Guattari, em “O Anti-Édipo”, livro que surgiu após o movimento libertário “Maio de 68” na França, no qual os dois autores participaram ainda sem se conhecer. Em 1975, lançam “Kafka: por uma literatura menor”, saindo da política e mergulhando na literatura. “Mil Platôs” (1980) marcaria o fim da parceria entre Deleuze e Guattari, mas em 1991 eles publicam “O que é a Filosofia?”, um livro despojado de estilo no qual a resposta do título pode se resumir em: “a questão da filosofia é o ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um ao outro”. Esta frase, que poderia ser uma resposta, nada mais é do que o princípio de inúmeros questionamentos presentes em sua obra, deixando claro a reflexão crítica a partir do sensível.
Paralelo aos livros, mantém a vida acadêmica como professor. No final de 1969, foi nomeado professor titular do departamento de filosofia da nova Universidade experimental de Vincennes, que na época era considerado o pólo intelectual, político e artístico de Paris, o que reitera seu estilo, que ultrapassa os limites clássicos da filosofia e se abre às ciências e às artes.
Deleuze é um filósofo original, que escreveu inicialmente livros sobre outros filósofos. São estudos onde ele apresenta a obra desses pensadores, com uma leitura sistemática de seus escritos. Faz a sua filosofia através desses outros conceitos, todos escolhidos a dedo. Para ele, todos os filósofos que lhe inspiraram têm algo em comum e fazem parte de um mesmo conjunto: uma espécie de crítica ao negativo, uma afirmação da vida. Sua obra tenta combater no interior da Filosofia o julgamento que ultrapassa o pensamento ocidental. E um de seus principais objetivos foi restituir ao pensamento sua potência criadora, que se encontrava sufocada pela hegemonia da perspectiva representacional. Para ele, as faculdades humanas conhecem dois regimes: o empírico, caracterizado pelas ordenadas estabelecidas e pelo hábito; e o sensível, onde as potências humanas se elevam. Esta é caracterizada pelo afeto. Daí se inicia o pensamento criador. E assim se dá o processo de criação: a partir do caos, entendido como pensamentos que escapam a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas. É o instante em que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Em “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche destaca a criação artística como fundamental para a existência humana, sendo a primeira grande força criadora artística a Mitologia, com a criação dos deuses no Olimpo. Deleuze se inspira nisso para falar da arte como atividade criadora, que pensa e abre novas possibilidades de agir e de pensar, produzindo um devir ativo.
Michel Foucault afirmou que “o futuro será deleuziano”. E essa afirmação vem ganhando cada vez mais força, sua obra cada vez mais desdobramentos e confirmando que ele é um dos principais pensadores do século XX. Curioso que, ao perguntarem a Deleuze sobre o futuro da filosofia, ele prontamente respondeu: “Será bastante penoso!” E questionou: “O que é o futuro senão aquele que passa por toda espécie de especulação, evitando as probabilidades e previsões do presente, e dando início aos devires que ocorrem silenciosamente, e quase sempre de forma imperceptível?” Seu pensamento sobre passado, presente e futuro é bastante instigante e nos faz respirar fundo para refletir. Inspirado em Nietzsche, disse que descobrimos que mais profundo que o tempo e a eternidade, é a atemporalidade, que consiste em “agir contra o tempo passado e, assim, atuar sobre o nosso tempo e, espera-se, em benefício de um tempo que está por vir.” Mesmo sem saber, Deleuze criou o mais complexo exame das forças que movem ou que imobilizam a vida no mundo contemporâneo, que se dirige para a dobra do milênio e que exige uma compreensão e uma crítica a par de suas transformações. Seu pensamento rebelde fez sua obra ultrapassar os muros acadêmicos e servir de alimento aos discursos liberacionistas e contraculturais de toda uma época. Fez também repensar o conceito de verdade, e afirmou: “Devemos voltar a crer no mundo.” Quando falava de política, visava escapar dos limites estreitos da identidade fixa que corresponde a escapulir das formas de controle e de exploração determinadas de cima pelo capital.
Seu pensamento e sua obra refletem nos dias de hoje e caem como uma luva para os questionamentos atuais. Para a professora e Doutoranda em Filosofia, Larissa Rezino, Deleuze - assim como Félix Guattari - dialogam muito com a nossa atualidade justamente por ser um pensamento contemporâneo. “É como se eles nos dessem ferramentas para a compreensão do nosso real. Por exemplo, a ideia mesmo de diferença - que é central no pensamento de Deleuze - através dela é possível endossar a discussão de várias pautas minoritárias para pensar o outro, a identidade, o gênero, o sistema político, enfim, tudo o que difere do modelo padrão do igual.” Construir uma filosofia da diferença coincide no projeto de assegurar para a vida linhas de fuga que sirvam para escapar dos determinismos superiores e transcendentes. Uma de suas mais irreverentes expressões foi quando definiu o que fazia como “popfilosofia”, no sentido de uma criação que se alimenta sem preconceitos de fontes heterogêneas. E esta pluralidade transborda a filosofia, inspira outros discursos e abre inúmeras perspectivas sobre aspectos de pensamentos fora da grande tradição. É sobre um pensamento ainda capaz de espantar o torpor e de restituir a vontade de inventar o mundo. Afinal de contas, como ele mesmo disse, a filosofia existe para que a besteira não seja tão grande.