CAIO BUCKER
O amor é cego?
Por CAIO BUCKER, ocaiobucker@gmail.com
Publicado em 28/10/2021 às 09:03
Alterado em 28/10/2021 às 09:04

Recentemente assisti a um reality show bem inusitado: “Casamento às cegas”, na Netflix. E mais inusitado ainda é que comecei pela versão brasileira. A série original norte-americana estreou em 2020, e apresenta homens e mulheres que buscam o amor e ficam noivos antes de conhecer os parceiros cara a cara. Os casais começam o jogo em cabines isoladas, e apenas conversam, separados por uma parede. A ideia é que se apaixonem pelo papo e pelas histórias. Mas será que isso é realmente possível? Num mundo onde a maioria faz escolhas pela aparência, pelo bolso e corpinhos sarados, se interessar por alguém por ondas sonoras em tão pouco tempo é algo fora do padrão. Se o que acontece no programa - em alguns poucos casos - for verídico, palmas para quem inventou essa joça. O velho Bauman deve estar feliz. A versão brasileira que estreou agora em 2021 segue à risca a original, inclusive na escolha dos participantes, que parecem fazer parte de uma mesma tribo, com perfis e estéticas similares, salvo raras exceções.

Mas eu não estou aqui para comentar ou criticar o reality. Até porque ele cumpre bem sua função quando a ideia é assistir algo light, esvaziar a mente e passar raiva. De certa forma, é bem interessante porque fala de seres humanos e de relacionamentos, e mostra como anda o mundo. Por incrível que pareça, nos faz refletir. Porém, minha divagação é sobre uma frase que foi falada diversas vezes em ambas as versões: “o amor é cego”. Ou “o amor é cego?” Acho que com a interrogação soa melhor. Platão, o filósofo do amor, levantou um pouco deste questionamento. Chamar o amor de cego faz parecer que não sabemos quem é a pessoa amada. Mas ao pé da letra, a expressão poderia soar de mal gosto, pois uma pessoa sem visão pode amar mais intensamente que pessoas com a visão perfeita. Sem filosofar muito, a cegueira do amor se mostra como uma fragilidade dos românticos apaixonados, que podem ficar impedidos da visão real da pessoa desejada. Mas também, quem ama, pode ser quem melhor enxerga aquela pessoa. Um pouco paradoxal, mas está tudo bem. Será que o amor nunca é cego? Ou sempre é cego? Quem ama de verdade é quem vê todos os lados e possibilidades do outro, coisa que raramente enxergamos nos desconhecidos. O olhar com amor e afeto é o amor verdadeiro.
Aí o reality show parece até ter certa inspiração no pensamento platônico, que denominou a busca constante de satisfação como busca de beleza. Para o filósofo, beleza é o que atrai o ser humano em tudo que lhe dá satisfação e desejo. Logo, para ele, é pelo amor que o ser humano busca beleza. Mas quando ele fala de beleza, não é sobre o padrão normativo que vendem nas capas de revistas, e que a maioria busca em filtros de instagram. O belo é a harmonia. Uma forma é bela se ela constitui em si mesma um todo perfeitamente harmonioso. É a forma manifesta do Bem. A beleza é a forma na qual o Bem Universal se manifesta através da ação do sujeito ético em toda a sua transparência. O que adianta uma pessoa ser bonita fisicamente, se ela não dá beleza para o mundo? Beleza interna não é apenas ser uma pessoa boa e de caráter, mas também deixar o mundo mais bonito, com modos de ser e agir. Será que os criadores de “Casamento às Cegas” pensaram nisso tudo?
Lembro de ler Bauman nas noites insones, e fritar com a coisa toda do amor líquido. Já é sabido que vivemos num mundo de incertezas e inseguranças. São tempos de relações frágeis, que se tornam cada vez mais mercantilizadas e individualizadas. A relação social, pautada em uma responsabilidade mútua entre as partes que se relacionam, é trocada por um outro tipo de relação onde a grande questão é a facilidade de esquecer o outro e se desconectar. Ou seja, o relacionamento nem existe. E será que num reality show, existe? Ou pode vir a existir? Eu passei a temporada toda encucado com isso, confesso. Mas achei interessante a possibilidade de questionamentos que o programa nos dá. Se espremer direitinho, dá para refletir sobre encontros, sobre padrões enaltecidos pela mídia, sobre a cobrança que as mulheres sofrem diariamente em seguir estes padrões e nas situações que colocam em suas cabeças desde pequenas, como casar e ter filhos para serem bem sucedidas. Vemos também a necessidade de autoafirmação que todo ser humano tem, e em como reproduzem estereótipos o tempo todo para chegar a algum lugar que nem lhe pertence. Se o amor é cego, eu não sei. Mas quando ele é sincero, ele enxerga de verdade. Experiência própria.