CAIO BUCKER

O que está acontecendo?

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 04/11/2021 às 08:29

Caio Bucker JB

Eu era criança. Devia ter uns 4 ou 5 anos, e já ouvia música o tempo todo. Lembro de um clipe que passava diariamente na televisão e eu ficava sentado, vidrado, observando a melodia com o refrão chiclete colorindo a cena onde quatro pessoas se divertem num parque, tocam e cantam num estúdio, mostrando em uníssono a sintonia de um grupo com personalidades parecidas. Essa música me perseguiu por anos. Aliás, ela me persegue até hoje. O refrão se resume num questionamento que sempre fiz, e diariamente venho fazendo ainda mais diante das loucuras desse mundo que vivemos. Há uns nove anos atrás, resolvi tatuar a frase do refrão na panturrilha esquerda, pois precisava eternizar aquele sentimento e uma memória. Essa música, para mim, fala de memória e de saudade. Saudade de um tempo que eu não vivi, mas sempre tive a sensação de ter vivido e experimentado. Saudade de um mundo que não volta. Uma saudade sem fim, que já sentia desde criança, enquanto ficava sentado, vidrado, observando a melodia com o refrão chiclete que falei anteriormente.

 

Macaque in the trees
Linda Perry, vocalista do 4 Non Blondes (Foto: divulgação)

 

A música chama-se "What's up?”, e é do 4 Non Blondes, uma banda de rock alternativo formada em 1989 em São Francisco, na Califórnia. O único álbum lançado - “Bigger, Better, Faster, More!” - em 1992, foi premiado como o melhor álbum do ano, vendendo mais de seis milhões de cópias em todo o mundo. A música, que tanto me marcou, foi considerada um dos hits da década de 90, e Linda Perry, grande musa inspiradora e vocalista, foi eleita a melhor cantora do ano. Com este sucesso todo, resolveu deixar a banda, pois achou que tinha ficado pop demais. A frase que tatuei foi "What's going on?”. Em português, “O que está acontecendo?”, a pergunta que me faço desde sempre. O que está realmente acontecendo, gente? Que surto coletivo é esse? Parece que o mundo está ao contrário e ninguém reparou, como diria Nando Reis em seu “Relicário”, música que também tem a tal frase questionadora. Alguns acham que a tatuagem é uma homenagem ao gênio Marvin Gaye, que tem uma canção com este nome. Poderia ter sido, certamente. Mas foi para Linda Perry, para o 4 Non Blondes, e para um momento doce que eu tinha saudade de não ter vivido. E tenho até hoje.

Lembranças e tatuagens à parte, estava pensando sobre nossas memórias, e como as músicas nos transportam a momentos marcantes, situações especiais - ou nem tanto - e fases da vida. Lendo Santo Agostinho, vejo que ele definiu dois tipos de memória: a sensitiva e a intelectual. A primeira como um conjunto de imagens produzidas a partir da percepção dos sentidos, e a segunda relacionada à realidade. Assim, Deus teria colocado o conhecimento de tudo no espírito humano no momento de seu nascimento, e este não aprenderia os conceitos, mas se lembraria deles a partir de um determinado estímulo. Como a música. Uma das questões discutidas pelos estudiosos é o fato das lembranças suscitarem sensações correspondentes às vividas anteriormente. Tem música que me leva ao exato momento vivido. E assim como a música, o olfato. Este também é uma fonte de resgates. O próprio Chico Buarque disse em “Estorvo”: “A lembrança me bate com tanta força que chego a sentir o cheiro da cabeça da minha irmã, que ela dizia que era do cabelo, e eu dizia que era da cabeça, porque ela mudava de shampoo e o cheiro continuava o mesmo [...]” É a figura da lembrança que bate, em contraposição àquela lembrança que é buscada, alude ainda à temática da memória involuntária.

Para ter memória, o mundo criou a música. No início das civilizações, os saberes eram passados por meio da tradição oral. E essa tradição oral dependia da memória. Antes de serem escritas, as narrativas eram faladas ou cantadas. O filósofo Henri Bergson, em “Matéria e Memória”, já afirmara que “a lembrança pura, à medida que se atualiza, tende a provocar no corpo todas as sensações correspondentes.” É uma loucura! Os especialistas chamam essa lembrança de identidade sonoro-musical, por ser algo que destaca nossa individualidade em relação ao mundo. De acordo com musicoterapeutas, ao escutarmos uma música que faz parte desta nossa identidade, memórias são acionadas, como as emoções ligadas a elas. A música integra a construção da nossa identidade subjetiva, que pode ser informada e transformada ao longo dos anos, diante de variações de gosto, personalidade, habilidades e práticas. Mas o fato é que marcam momentos significativos e exercem grande influência em nossas emoções. É como uma catarse que atualiza experiências e saudades, momentos compartilhados e emoções ao som dos primeiros compassos.

É muito bom ter lembranças. É bom também sentir saudades. E melhor ainda é termos artifícios que nos fazem voar, como a música! Assim como “What’s up?”, tenho um repertório de momentos eternizados em claves de sol e beats sonoros. Lembro da primeira vez que fiz uma aula de teatro, aos 13 anos, e a professora Yeda Dantas, do Gigantes da Lira, colocou “Folia de Príncipe”, do Chico César. Quando ouço, me vejo no palco ocupando espaços e aprendendo a usar o nariz de palhaço. Alguns momentos suaves, que pareciam não ter grande importância na época, se tornam momentos de carinho, como o cruzeiro universitário que fiz na formatura do ensino médio, onde passamos quatro noites insones ouvindo Jason Mraz. Em momentos mais intensos, a música também me ajudou com a vida louca vida. Esse ano, quando fui jurado de um festival, descobri o Victor Mus e sua “Coragem”, que me deu força para enfrentar um dos momentos mais tristes da minha vida. E a playlist é enorme. Muitas emoções e sensações diferentes que acabam se completando e formando o que sou hoje, e o que levo pra frente. Mesmo com esse mundo cão de altos e baixos, e um caos sem fim, questionemos sempre o que está acontecendo ao som de um bolero. E que nunca nos falte música na vida. Sem música a vida seria um erro.

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