Nós, negros, estamos exaustos. É sobre isso e não está tudo bem!

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Por CAIO BUCKER e HANANZA

Caio Bucker

Queridos leitores, Caio Bucker aqui. Hoje a coluna vai ser um pouco diferente. Já vinha com a vontade de receber amigos escritores e pensadores para ocupar estas páginas que assino no Jornal do Brasil, a fim de poder ouvir outras vozes, novos pensamentos, e democratizar a reflexão, afinal de contas, a pluralidade de opiniões e conceitos é necessária na vida, na arte e na sociedade. Uma das pessoas que convidei para escrever é minha amiga Hananza, cantora, atriz, escritora e graduada em Filosofia. Papo vai, papo vem, falei para que ela ficasse à vontade, e quando a inspiração batesse, que me mandasse. E chegou este momento. Mas veio a partir de uma situação terrivelmente triste, trágica e repetitiva nessa sociedade truculenta e racista que vivemos. Mais um assassinato a sangue frio de um jovem negro. Desta vez, o congolês Moïse, espancado até a morte no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro), por ter cobrado pagamentos em atraso. Uma brutalidade sem fim. A partir disso, ela me escreve, exorcizando sua dor e emoções, e me manda o texto que, com muito respeito, faço questão de deixar a partir de agora para vocês.

 

 

HANANZA:
Neste país uma pessoa negra não morre sozinha. Quando uma vida negra é interrompida pelo racismo violento que alicerça nossa sociedade, cada um de nós morremos juntos, aos poucos. Vamos acumulando pequenas mortes ao longo desta vida, como se o fato da própria vida ser decrescente já não bastasse. O indivíduo negro neste país vive como se nunca pudesse acordar do pesadelo que é não poder voltar pra casa quando a comunidade é invadida e a morte iminente, ao andar numa loja e ser seguido pelo segurança como se o nosso tom de pele traduzisse pouca dignidade e transgressão, ter oportunidades, direitos e acessos constantemente negados e mais uma lista infinita que não caberia nesta coluna. Não importa o quanto a gente se esforce, não é sobre mérito e vocês já devem saber disso. A gente nada contra uma correnteza que já dura mais de quinhentos anos. Em 1837, o negro não podia frequentar escola, por lei, em 1850 com a lei de regulamentação de terras, acessá-las era impossível para qualquer cidadão negro que aqui estava. Em 1890, dois anos após a abolição da escravatura, o negro não podia andar nas ruas, sem motivo aparente, que era preso por vadiagem, segundo a lei dos vadios e capoeiras. Toda a estrutura é, e sempre foi pensada para o não desenvolvimento de nosso povo. Resultado disso é que 133 anos após a abolição ainda lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos, em primeira instância e assegurarmos nosso direito básico de viver.

Este país nos deve muito, pois foi o nosso povo que levantou o Brasil no braço à custa de muita dor e muito sangue. Foram os negros que trabalharam e passaram por todos os ciclos da economia deste país, pelo ciclo do café, do ouro, da cana de açúcar e tantos outros. Éramos nós que trabalhávamos para enriquecer um grupo privilegiado que se colocava como raça superior, mas certamente não seriam capazes do nosso feito e tampouco dos nossos conhecimentos. Até hoje seguimos no caminho de reconstrução de nossa autoestima dilacerada, nossas identidades perdidas, nossas histórias roubadas. Ainda hoje precisamos convencer, todos os dias, a nós mesmos e aos nossos, que nosso cabelo não é ruim, que nossos traços não são motivos de vergonha, que nossa capacidade não é inferior (mesmo tendo levantado um país inteiro). Precisamos orar e pedir misericórdia para termos o direito de voltarmos vivos pra casa, diariamente. E ainda assim esse tem sido também mais um direito negado a muitos de nós, a cada terreiro invadido, ameaçado e queimado neste processo cíclico, e já conhecido, de tentarem matar e nos privar de nossa própria fé. O que sobra para o negro neste país? Um país que nos reserva migalhas e diz na nossa cara, numa evidente ingratidão, que devemos ajoelhar e agradecer até pela escassez. Como se o fato de nos deixarem vivos, quando o projeto é nos matar, seja o maior dos favores possíveis e, portanto, símbolo de nossa sorte.

Essa semana, com um peito dolorido morri um pouco mais na agressão violenta a um irmão negro, africano, espancado até a morte, publicamente, por cobrar pagamento por seus dias trabalhados (vejam que ironia). Moïse morreu por estar inserido numa sociedade adoentada que naturaliza um homem negro sendo assassinato em público, sem que haja qualquer intervenção por esta vida. O pensamento racista enraizado, coloca o negro, que passa por qualquer situação de violência, como o responsável por seu “merecido castigo”. Se um homem negro apanha em público, ninguém denuncia, não aparta, sequer chamam a polícia, na certeza de que se ele está sendo agredido é possivelmente um ladrão, ou fez por merecer. Assim como um jovem negro correndo na rua é colocado automaticamente em condição de fugitivo. Nós pretos ainda não conquistamos a plena liberdade prometida em 1888. Nossas vidas seguem não importando e não será uma hashtag na rede social que irá nos salvar, nem a foto preta demonstrando luto. Serão as atitudes fora da rede que nos manterão vivos.

Trazendo Martin Luther King, mais que o grito dos maus o que me desespera é o silêncio dos bons. Iremos lutar e buscar a nossa libertação, como Malcolm X tanto nos incentivou, por qualquer meio necessário. Finalizo este desabafo com o texto final de meu livro em que deixo um recado para negros e brancos. Sim, a gente também escreve livros, produz conhecimento.
Acima de tudo, apesar de todos os pensamentos e atitudes eugenistas que este país abraça, não é de hoje (incluindo a involuntária esterilização em massa de nossa gente, na tentativa de nos dizimar), ainda estamos aqui e não daremos nenhum passo atrás!

“Brancos, sejam honestos, sejam justos, sigam além do discurso "eu tenho um amigo negro", "eu contratei um negro na minha equipe". Não repousem e findem suas culpas e responsabilidades numa hashtag em seu perfil ou numa postagem rasa com qualidade antirracista. Revejam seus privilégios por terem uma vida facilitada pela cor de suas peles que ditam os padrões. Para que o privilégio de vocês se sustente, a população negra peleja, sofre, morre, vive oprimida, sem avanços e oportunidades. Olhem ao redor e não naturalizem a ausência de negros nos espaços de poder e mesmo nas mesas e apartamentos ao lado. Se incomode.”

“Irmãos negros, nós somos gigantes por ainda estarmos aqui. Criemos nossas crianças para resistirem. Conversemos com nossos filhos, sobrinhos, primos e netos sobre suas belezas devastadoras. Elogiemos o quanto pudermos seus cabelos, corpos e tons de pele abraçados pela cor da noite. Contemos quantos negros fortes temos em nossa história, na arte, na música, na política e na vida para que possam se espelhar. Estejamos atentos às nossas referências, mas acima de tudo criemos as nossas próprias. É tempo de nos multiplicarmos de todas as melhores formas possíveis. Criemos nossas crianças para reagir, já que o silêncio nos foi por muito tempo a única opção. Não há de ser mais. É tempo de agir e quem viver verá que AINDA ESTAMOS AQUI.”