Laroyê, Exu!
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O Carnaval tem suas magias. Tem seu axé, tem sua força criadora e curativa. E digo isso muito sobre os desfiles das escolas de samba. Acho tão lindo ver aquela passarela iluminada com tanta gente feliz. Democrática na pista e no conceito, lugar de ocupação de toda uma comunidade que pode cantar, dançar e gritar sem julgamentos e preconceitos. Claro que isso tudo também existe, afinal, o mundo não é tão evoluído assim. Mas existe sim essa energia e alegria. Este ano, foram dois carnavais. Um não oficial com blocos e festas lotadas. E o outro, teoricamente o oficial, com foco nas agremiações. Engraçado que neste segundo eu não me senti muito no carnaval, nem recebi toda essa força, por escolha própria. Mas fiquei ligado nos desfiles, e senti que o povo estava lá, feliz e realizando um sonho em desfilar após o hiato pandêmico de dois anos. Me pareceu muito um momento de exorcizar aquele sentimento, vibrando entre alegorias e adereços, com batuque e muita cor. Um ponto que destaco sempre é a relação do carnaval com as religiões de matrizes africanas. Candomblé, Umbanda e tantos rituais que incorporam nos enredos de forma mais que necessária, contra o preconceito e a favor da liberdade de expressão. É lindo de ver!
Neste ano, a escola vencedora foi a Acadêmicos do Grande Rio. Eu nunca fui muito fã, e nem acompanhei tanto seus carnavais. Mas acho que ela tem seu valor e seu lugar. Eu sou Vila Isabel, da terra de Noel e Martinho, o homenageado no enredo deste carnaval. Respeito todas as outras, admiro e gosto de assistir, comentar e fazer palpites do resultado. O negócio é ser feliz e sambar, como diz nosso grito de guerra: “Sou da Vila, não tem jeito, por isso eu quero respeito, que meu negócio é sambar, o lá lá!” É isso. Eu sempre torço pela Vila, visto a camisa literalmente e acompanho cada passo desde a preparação. Mas esse ano, temos que ser justos. A Grande Rio fez um belíssimo desfile, e como algumas outras, tratou de um enredo essencial, que literalmente abriu novos caminhos, trouxe força e axé com um desfile formoso. O enredo se chama “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”. Os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora homenagearam o Exu, divindade presente nas religiões de matriz africana, responsáveis pela ponte entre humanos e orixás, e que são constantemente e equivocadamente associados ao diabo no imaginário cristão e nos religiosos radicais.
Exu é guardião. E a Grande Rio veio muito como guardiã deste carnaval. Exu é quem começa os trabalhos, abre os caminhos na terra e resolve as demandas. Rito necessário neste retorno que estamos tendo à uma vida dita normal. Necessário também durante a festa da carne, onde as energias ficam densas e carregadas. É preciso abençoar e limpar os caminhos para a vida passar e voltar a funcionar, com prosperidade e proteção. Assim como o Exu é guardião, a agremiação cumpriu também este papel. E mais do que isso: deu um grito de liberdade e contra a intolerância religiosa. O carnavalesco Leonardo Bora comentou: "O desfile foi pensado para ser um grande despacho. Um choque elétrico contra todo esse horror que está aí no mundo e no nosso país. Em defesa daquilo que a gente acredita, contra o racismo religioso e o processo histórico que demonizou Exu, para cantar a vida". Fiquei curioso e feliz com um fato: das seis escolas que irão desfilar no sábado das campeãs, a maioria se posicionou contra o racismo e o preconceito religioso que persiste no mundo. A Beija-Flor exaltou filósofos e pensadores negros; a minha Vila Isbael homenageou o mestre Martinho; a grande Portela falou sobre ancestralidade africana e sua influência na cultura brasileira; e o caldeirão do Salgueiro se inspirou em protestos antirracistas após a morte do americano George Floyd e no movimento Black Lives Matter.
Assim como a arte, o carnaval também está aí para dar recados, fazer refletir social e politicamente, e levantar questões de uma forma bela e dionisíaca. O carnaval é também uma expressão das artes. Sempre foi uma ferramenta de críticas e contestações. As marchinhas e seus temas irônicos são um exemplo da ligação da população com a festividade. Tem gente que acha que os desfiles não deveriam ser palco de discussões e sim apenas de “brincadeira” e festa. Mas a crítica social na avenida cresce em seu processo. Em tempos de transformação, é impossível que a realidade não seja absorvida. Os enredos vão deixando de lado o simples agrado a investidores, e acreditando no poder da opinião, da expressão e de temas relevantes, atuais e necessários. Ganham reconhecimento e dão voz a quem realmente faz o carnaval acontecer: o povo. Ali, o povo fala. E o povo quer liberdade de expressão. O povo quer gritar sem medo, sem censura e de forma democrática. Mas tudo isso ainda é um processo que precisa de resistência e força para abrir os caminhos. E quem abre caminhos são os Exus. Parabéns, Grande Rio. Laroyê, Exu!