Parem de falar mal da rotina
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Eu devia ter uns 16 anos quando comecei a aprofundar e profissionalizar minha relação com o teatro. Assistia tudo, ou quase tudo que estava em cartaz. A experiência de ser espectador do meu trabalho era um grande aprendizado, fruto da observação atenta aos detalhes. Alguns espetáculos me marcaram muito. No Poeira, assisti “O Púcaro Búlgaro”, de Campos de Carvalho com a direção do mestre Aderbal Freire Filho, uma aula de encenação e interpretação. No Maria Clara Machado, teatro de arena do Planetário da Gávea, me debrucei sobre o texto primoroso da amiga Daniela Pereira de Carvalho, em “Não Existem Níveis Seguros para Consumo destas Substâncias”. No extinto Villa Lobos, aprendi sobre o universo dos backstages com “As Eruditas”, de Molière, espetáculo que me levou pela primeira vez à Fiorentina. No Sesc Tijuca, batia ponto semanalmente em “Dia dos Loucos”, de Marcos Americano com direção de Denise Stoklos, e de tanto assistir, acabei entrando para participar de algo que inicialmente era um monólogo. Coisas que só acontecem comigo. Tem muitos outros, mas a lista é imensa e um pouco me falha a memória. Mas eu não poderia esquecer da peça que eu assisti todas as vezes que esteve em cartaz, fazendo jus ao nome e ao tema: “Parem de Falar Mal da Rotina”, de Elisa Lucinda. Saía sempre do teatro com um mantra. Era o espetáculo que eu queria ter produzido. Eu precisava realizar aquilo.
Eu conhecia Elisa pelos seus poemas, e que são muitos. O livro “O Semelhante” fez parte do meu repertório de saraus e encontros durante muito tempo. Lembro de uma coleção infanto-juvenil lançada em 2002, onde a poesia falava com crianças com a intensidade de uma adulta. Passei um tempo com o poema “A Ilha” decorado, e versejava suas linhas em todos os lugares que eu ia: “Na solidão da existência, nado firme na batida das águas, corpo revolto à mercê da decisão das ondas, vou destilando coragem no desespero das braçadas. É noite. Ainda bem que os versos são claros, me ancoram, me falam, me salvam, me beijam na boca o beijo longo da salvação, me devolvem o ar, a vida, a trilha. O poema é para mim terra firme, como é, para o náufrago, a ilha.” O livro “Eu te amo e suas estreias” virou um encontro do acaso, mas eu não acredito em acaso. Acredito na força dos encontros. Descobri esse livro e devorei. Anos depois, soube que foi desse livro que nasceu o espetáculo “Parem de Falar Mal da Rotina”. Foi dele que veio a epifania de perceber que a vida é estreia, e que o assunto merecia tomar voz nos palcos. O “Parem” havia sido publicado também em livro, mas desde sempre esteve esgotado. Minha mãe, caminhando pela Praça Saens Penna, bateu o olho num camelô com livros estendidos no chão. E ele estava lá, me esperando. Ganhei dela de presente.
Os anos se passaram, o espetáculo e a Elisa ficaram na minha mente, e pude viver o encontro mais poético de todos. Numa noite de sexta-feira, como de praxe, de branco na Fiorentina - sempre a Fiorentina nos proporcionando memórias - encontrei minha amiga Daúde, cantora potente, um Orixá. Ela levantou, me abraçou e disse que queria me apresentar uma amiga, que estava em busca de um produtor. Entrei com o elenco que me acompanhava, e prontamente voltei para conhecer a tal amiga. De longe ouvia aquela voz rouca e potente esbravejando o cotidiano com ironia: a amiga era a Elisa Lucinda. Por um minuto passou um filme na cabeça com cenas da peça e fragmentos de seus livros. Ela disse que gostaria de voltar com o “Parem” em temporada no Rio e buscava um produtor. “Vamos conversar? Me passa seu contato.” Fui da forma mais clássica e poética possível: anotei meu número em um guardanapo e voltei à mesa que estava. Brindei. Brindei ao que está sempre em nossas mãos: “a vida inédita pela frente e a virgindade dos dias que virão”, como recita em seu poema “Libação”. Dias se passaram e nada aconteceu. Nenhuma ligação, nenhuma mensagem. Liguei para Daúde e pedi o número de Elisa, pois não ia perder essa oportunidade. Ao ligar, me apresentei novamente e disse que esperava sua ligação, pois já passava de uma semana. Ela riu, e contou que não tinha me ligado pois, sem querer, havia usado o guardanapo com meu número para limpar seu batom. Pura poesia.
Mas deu tudo certo. Realizamos uma temporada de sucesso no Teatro João Caetano, um sonho que tinha em colocar aquele banner que toma conta da Praça Tiradentes, no Centro do Rio. Veio a pandemia, e mesmo assim lotamos, dentro das limitações, o Teatro Riachuelo, com transmissão simultânea presencial e online. O monólogo une histórias vividas e ouvidas por Elisa, como boa observadora do cotidiano, até porque, como ela mesmo diz, “as histórias chegam até mim”. O resultado são duas horas e meia de elogios à rotina entre personagens diversos, nos obrigando a observarmo-nos de fora, e nos ajudando a perceber que a rotina é algo fictício que criamos. Nós temos o poder da mudança. Nós somos os diretores, atores e produtores de nossas próprias vidas. Ela comenta: “A peça nasceu das inúmeras lições que a natureza nos ensina todo dia. A grande lição é a capacidade de estreia que faz tudo na natureza acontecer de forma espetacular, di-a-ri-a-men-te: o nascer do sol, o pôr do mesmo sol, o céu, a chuva, as estrelas, os ventos e as tardes. A natureza ensina a toda gente, mas, às vezes, alunos distraídos que somos, não vemos o lindo óbvio que ela nos oferece e as dicas que ela pode nos dar na condução do nosso cotidiano”.
Agora em 2022, o espetáculo comemora 20 anos em cartaz. É uma vida em cena, sempre inédita. Toda vez uma estreia. São milhões de espectadores em diversas temporadas lotadas no país e no mundo. É uma nova peça a cada dia, assim como a própria vida. A Elisa me reforçou o aprendizado de que a vida é uma obra aberta, e tudo de rico e ensinante que ocorre a todo momento, cabe e se transforma. Isso fortalece a ideia de que, se somos autores da vida, somos responsáveis por sua qualidade na parte dela que nos compete. E isso leva a crer que se pode pensar e rir ao mesmo tempo. Então, vamos aos “Termos da Nova Dramática”: “Parem de falar mal da rotina. Parem com essa sina de que tudo vai mal porque se repete. Mentira. Bi-mentira: não vai mal porque repete. Parece, mas não repete, não pode repetir. É impossível! O ser é outro, o dia é outro, a hora é outra, e ninguém é tão exato. Nem em filme. Pensando firme, nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas.: chuva dia azul crepúsculo primavera lua cheia céu estrelado barulho do mar. O que que há? [...] Nosso tempo então é quando. Nossa circunstância é nossa conjugação. Então vamos à lição: gente-sujeito, vida-predicado; eis a minha oração. Subordinadas aditivas ou adversativas, aproximem-se! É verão. É tesão! O enredo a gente sempre todo dia tece. O destino aí acontece: o bem e o mal, tudo depende de mim, sujeito determinado da oração principal.”