Chico: oitenta anos de olhar

Por MARIA CLARA BINGEMER

Quem vê Chico Buarque fica imediatamente impressionado com o tamanho e a cor de seus olhos. Verdes? Azuis? Uma mistura de ambos? O fato é que aqueles olhos claros tomam a frente da cena e captam a atenção de quem ouve suas canções, acrescentando ao encanto que elas provocam.

Não faria muito sentido aqui homenagear o poeta e compositor maior da nossa música e de tantas outras coisas nossas – escritos, romances, peças de teatro – apenas pela beleza da cor de seus olhos. Por isso já de saída, nesta crônica de celebração pelos seus 80 anos, esclarecemos que não se trata tanto de olhos, mas de olhar. Em meio a tantas celebrações que o artista deve estar recebendo ao longo desta semana e especialmente no dia de hoje, quero celebrar seu olhar.

O olhar é mais que a paisagem que os olhos físicos conseguem desvendar através da retina. Trata-se da consciência e percepção de alguém, no caso um indivíduo sobre si mesmo e igualmente sobre outros indivíduos, outros coletivos e sobre o mundo que o circunda e no qual vive. Para a filosofia, o olhar está ligado à contemplação, à Theorein (Theoria), ou seja, ao pensar que se dá no gesto primeiro da atenção às coisas até a visão das ideias e conceitos.

Chico tem esse olhar aberto e atento para a realidade e as coisas. Suas composições sempre revelaram essa abertura consciente e crítica que percebe a injustiça e a opressão da realidade. Seu talento revelou em várias peças esse olhar agudo de cidadão brasileiro, alguém que embora nascido em família com meios e posses, formado em boas escolas e com possibilidades de beber da imensa cultura do intelectual que era seu pai não perdia a perspectiva da totalidade do real, consciente de que sua situação não lhe dava privilégios, mas sobretudo responsabilidade. Esse olhar aparece no lindo fado “Tanto Mar,” quando celebra a vitoriosa revolução dos cravos em Portugal, ao mesmo tempo em que questiona a ditadura que ainda persistia no Brasil. Igualmente na canção “Vai passar” que resgata as agruras do continente erguido e construído por pobres e pretos que encontram na música e na dança “uma alegria fugaz” que mostra a evolução da liberdade que os transforma em barões e príncipes mas só dura “até o dia clarear”; ou o pungente “Cálice”, que recorrendo à oração derradeira de Jesus antes da Paixão denuncia as torturas e a censura em seu país.

O olhar de Chico pousa-se também com ternura e compaixão sobre a alteridade daqueles e daquelas que formam o tecido da paisagem humana que observa. Com sua lira, destaca personagens que estão presentes no cotidiano brasileiro e denuncia suas tragédias pessoais, assim como o modo inclemente pelo qual são tratados. Todos sentimos e sofremos juntos com seu “Pedro Pedreiro” esmagado por uma rotina devoradora de esperar; ou com o operário de “Construção” que ama sua mulher pela última vez antes de cair feito um pássaro e encontrar a morte no chão ao lado do prédio que erguia com sua mão, seu suor e seu sangue todos os dias; ou ainda com a trans “Geni” a quem todos desprezam e que depois será a que salvará a cidade condenada; a “Carolina” que fica na janela vendo o tempo passar e tantos e tantas outras. É sobre a alteridade que forma coletivos que o poeta canta triste e melancolicamente, como “Gente Humilde”; ou irônica e divertidamente como o “Malandro” que aposentou a navalha, sustenta mulher e filhos chacoalhando diariamente num trem da Central para ir ao trabalho e sobreviver.

No entanto, o mais importante olhar que aqui desejo celebrar nesta festa de 80 anos do poeta é aquele que é lançado sobre a mulher. E não apenas sobre, mas a partir da mulher. O talento de Chico é tanto e a musa que o toma tão poderosa que ele chega a compor “como se fosse “ mulher, ou melhor “sendo” mulher. A inspiração liberta a anima que em sua lira convive com o animus de seu gênero masculino e fala com os sentimentos, as palavras, as emoções, as raivas das mulheres que povoam suas composições com abundância e destaque. As vezes anônimas como a garota de programa que é daquelas que só dizem sim e depois viram a página do “Folhetim” ou a esposa abandonada durante as noites que depois recebe o marido devasso em casa em “Com açúcar com afeto”, composição polemica, que Chico declarou que não faria hoje; ou Joana de “Notícia de Jornal” que atentou contra a existência num humilde barracão e é mais uma mulata triste que errou e ao voltar ao barracão percebe que “não se volta ao que acabou”.

O olhar verde/azulado (ou será azul/esverdeado?) contempla suas coexistentes representantes do outro gênero e lhes dá voz. E ao fazê-lo, são as próprias mulheres que se identificam e se encontram em sua arte e por isso tanto o admiram. Graças a suas canções muitas mulheres tomaram consciência da submissão indevida que suportavam caladas, ou criaram coragem para tomar posições que antes pensavam dever aguentar sem reclamar; ou deram o salto para entregar-se a um amor que antes lhes dava medo.

Por tudo isso e muito mais é justo hoje celebrar o olhar de Chico que sabe contemplar e enxergar longe e traduzir na magia das palavras o que percebem seus olhos ao se abrirem sobre a realidade de seu país e seus habitantes, sobretudo as mulheres. Que venham oitenta mais, oitenta vezes oitenta para esse artesão da língua e bardo da condição humana. Parabéns!

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo: Paixão por Deus em tempos de descrença” (Editora Rocco), entre outros livros.