CINEMA

Inspiração na poesia intensa de Lupicínio

Alfredo Manevy fala ao JB sobre seu filme ‘Lupicínio Rodrigues, confissões de um sofredor’

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
redacao@jb.com.br

Publicado em 25/12/2022 às 12:24

Alterado em 25/12/2022 às 12:26

Lupicínio Rodrigues no arquivo do JORNAL DO BRASIL Foto: Evandro Teixeira/cpdoc@jb.com.br

O documentário ‘Lupicínio Rodrigues, confissões de um sofredor’ é sobre um dos nomes mais célebres da cultura brasileira, e resgata o legado musical evidenciando a contribuição artística e o contexto histórico/social no qual viveu o grande compositor, cujas músicas de sucesso ultrapassam gerações e foram interpretadas por alguns dos maiores nomes da Música Popular Brasileira. Com influências do samba e do tango, sua versatilidade passou por diversos outros estilos.

Fala-se que o artista ainda não teve o reconhecimento que mereceria. Manevy diz que “o grande motor do documentário é entender o que fez o músico cair no esquecimento popular”. Ao longo do filme fica visível a forma como ele se equilibrou entre o estrelato mediano, as limitações de oportunidades e o imenso talento.

O filme traz entrevistas, entre outras, com Gilberto Gil, Nelson Coelho de Castro, Zuza Homem de Mello, Jards Macalé, Linda Batista, Elza Soares, Arthur de Faria e Marcelo Campos. O próprio Lupicínio também aparece em várias cenas extraídas de gravações antigas.

"Se acaso você chegasse” – música que surge com detalhes em uma das sequências – lembra que um dos maiores sucessos da carreira do gaúcho vai além da letra romântica que conquistou o país na década de 1940. A canção não só se tornou trilha sonora do musical americano "Dançarina loura", como também foi indicada ao Oscar de 1945.

Lupicínio, que na época trabalhava de bedel, porém, nunca foi consultado, muito menos creditado. Que dirá, então, agraciado pelos direitos autorais da trilha. Ainda assim, o documentário mostra que ele ficou imensamente feliz quando soube.

Embora tenha emplacado vários sucessos entre as décadas de 1930 e 1960, o artista nunca conquistou, de fato, autonomia para viver só de música. Durante a carreira, sua principal renda vinha mesmo dos barzinhos que administrava.

"Ele tinha que abrir bares para poder cantar, porque diziam que ele não era cantor. Ele nunca fez um show em Porto Alegre, sua cidade natal. Isso é muito forte", enfatiza o diretor.

O documentário mostra ainda episódios de racismo que sofreu quando um restaurante se recusou a atendê-lo por ele ser negro.

O filme foi um dos destaques da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em setembro, e também esteve neste mês de dezembro na programação do Festival de Aruanda (João Pessoa, PB), onde ganhou os prêmios de melhor trilha sonora e melhor edição para Isabel Castro.

A estreia de ‘Lupicínio Rodrigues, confissões de um sofredor’ será no Canal Curta, em 2023, mas não há ainda uma data marcada para lançamento no circuito. Por enquanto, está sendo mostrado em festivais.
Manevy, nascido em Campinas, em 1977, hoje vive em Florianópolis. Formado em Cinema pela Universidade de São Paulo, trabalhou em políticas de inclusão e formação de público para cinema, quando presidiu a Spcine e foi secretário executivo no Ministério da Cultura. Atualmente, é professor de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor” é sua estreia na direção de longas-metragens.

Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, o cineasta contou o que o inspirou para realizar o filme, o critério que norteou a escolha dos depoimentos e sua intenção de, além de fazer justiça ao talento do artista, mostrar como seu legado contribuiu para a preservação musical e a memória cultural do país.

 

 

Macaque in the trees
Alfredo Manevy, diretor de 'Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor' (Foto: divulgação)

 


JORNAL DO BRASIL - Retratar Lupicínio Rodrigues é uma iniciativa bem importante e que já deveria ter acontecido há muito tempo. Qual sua principal inspiração para realiza-la?

Alfredo Manevy - A inspiração vem da própria poética de Lupi, intensa, emocional, que trata das dores da perda ou traição amorosa de forma às vezes mordaz e irônica. E da forma como sua musicalidade segue presente no imaginário popular e sofisticado da sofrência. Músicas como “Volta” e “Nervos de aço”, mesmo que alguns não saibam, são canções dele. Lupicínio ocupa um lugar singular na cultura brasileira, como se estivesse ao mesmo tempo dentro e fora do cânone. E a inspiração vem também de filmes que exaltam a música popular brasileira, um filme como “Nelson Cavaquinho”, de Leon Hirszman ou mesmo uma ficção como “Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos, que aliás tem um trecho usado no nosso filme. Lembro o trabalho de Rogerio Sganzerla sobre Noel Rosa e muitos documentários excelentes que têm sido feitos hoje em dia e tratam de personagens da música popular, como filmes de Joel Zito Araújo, João Moreira Salles e Eryck Rocha. Creio que um filme em torno de música pode ser feito de muitas formas, com muitas abordagens narrativas, e escolhemos um caminho próprio que articula múltiplas dimensões. Algumas perguntas nos guiaram: como Lupi conquistou e de certa forma reinventou a indústria musical nos anos 40 sem sair de Porto Alegre? Como um homem negro do sul do Brasil, talentoso, lidou com as adversidades do seu tempo, como o racismo e o abismo social? Como sua música chegou a Hollywood enquanto ele servia como bedel na universidade? Como lidou com os movimentos musicais que vieram depois dele e que de certa forma tiraram ele das paradas de sucesso? Tudo isso nos intrigava e inspirou as escolhas narrativas e estéticas.

 

O filme traz vasto material de arquivos de jornais, entrevistas, além de depoimentos de personalidades e artistas. Houve algum critério prévio para obtenção desse material, alguma pesquisa, ou foi acontecendo naturalmente na medida em que o processo começou?

Buscamos inicialmente acessar todo um vasto material de pesquisa já existente. Definidas as questões que nos interessavam aprofundar, fizemos nossa própria pesquisa, investigando paradeiro de entrevistas de Lupicínio que eram dadas como perdidas, sendo que, uma das que encontramos, o áudio estava muito deteriorado e precisou ser recuperado pela editora de som. Conseguimos encontrar algumas dessas entrevistas preciosas, e a partir daí ficou claro que o roteiro deveria considerar essa iniciativa do próprio Lupicínio de dar sua versão dos fatos de sua vida e sua observação pessoal do que acontecia na música popular brasileira. Demos primazia a essa narração dele, sem, no entanto, forçar uma adesão dos espectadores ou restringir o filme ao ponto de vista de Lupicínio. A outra parte da pesquisa trouxe materiais que permitiram dar vida ao contexto, aos afetos e visões de mundo que circulavam na época.

 


Complementando, houve dificuldade para obtenção desse material e também dos depoimentos?

Contamos com dois pesquisadores dedicados para buscar arquivos, entre eles essas entrevistas raras, em órgãos de guarda públicos e privados. Em período de pandemia, o acesso aos depoimentos e acervos foi mais difícil que o normal. Mas a equipe de produção e de pesquisa foi incansável, porque sabíamos que havia tesouros, como a última entrevista de Lupicínio feita no hospital dias antes de sua morte. Ou o momento em que ele e Cerenita (sua esposa) cantam nos bastidores de [o programa] Hebe Camargo. Além dessa frente, contamos com um grupo de pesquisadores que se dedicam há anos ao pós-abolição no Rio Grande do Sul, e essa parceria nos permitiu trazer ao primeiro plano a ancestralidade africana de Lupi, uma dimensão pouco exaltada na obra do compositor. Uma dimensão do Sul do Brasil que precisa ser conhecida melhor.

 

Além de celebrar um dos nomes mais destacados da cultura brasileira, o filme é também a preservação de um legado. Imagino que havia essa intenção. Fale por favor um pouco mais sobre isso.

Um dos depoimentos mais importantes de Lupicínio – usado no filme – aconteceu em 1968. Soube pelo Ricardo Cravo Albin, um dos entrevistadores do compositor naquele dia, que foi o próprio Lupicínio que procurou o MIS para dar esse depoimento para a posteridade, quando o comum era o convite partir do museu. Isso me chamou a atenção para o fato de que Lupicínio, ao contrário do que se imagina, tinha sim a exata dimensão da sua importância na música brasileira e, do jeito dele, estava expressando sua recusa ao esquecimento, se articulando como podia para narrar e em certos momentos desmistificar sua trajetória artística. Esse processo de apagamento não é exclusivo com Lupicínio, é bem marcante na vida brasileira a dificuldade com a memória. Por isso acreditamos que celebrar o legado vivo do compositor passa por revelar as contradições e conflitos do passado e presente do país.

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