‘Rio, Negro’, de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, estreia quinta-feira

Documentário narra a influência da população negra de origem africana na formação do Rio de Janeiro

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO

Gabriel Barbosa, o professor e historiador Luiz Antonio Simas e Fernando Sousa

Além da influência da população negra de origem africana na formação do Rio de Janeiro, o filme ‘Rio, Negro’ aborda as profundas transformações promovidas por esse grupo na cidade, como a formação das comunidades carnavalescas, os costumes religiosos, os saberes ancestrais, além da perseguição institucional.

O documentário, da Quiprocó Filmes e da Casa Fluminense, reúne depoimentos de personalidades cariocas como Haroldo Costa, Luiz Antônio Simas, Mãe Meninazinha de Oxum, Tainá de Paula, o carnavalesco Leandro Vieira, Helena Theodoro, entre outros, além de importante acervo histórico.

O longa revela o protagonismo individual e coletivo da população negra, bem como a perseguição institucional que culmina na transferência da capital para Brasília também como uma estratégia de apagamento dessa população. O filme apresenta argumentos históricos inéditos que articulam o ideário racista que molda nossas relações sociais, a mudança da capitalidade nacional e os efeitos políticos decorrentes desse processo sobre o Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo em que reconstitui essa contribuição, o doc mostra o movimento institucional de “embranquecer” e “civilizar” a cidade por meio da assimilação de modelos urbanísticos e arquitetônicos das metrópoles europeias, sobretudo os de Paris, em detrimento das influências africana e lusitana. Veremos, por exemplo, que a eliminação de cortiços, da região portuária da Pequena África e do morro do Castelo dos espaços urbanos fazem parte desta estratégia.

Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, por e-mail, os diretores falam sobre a origem da ideia do filme, qual o critério para selecionar imagens históricas e depoimentos, a decisão de retratar temas sobre a população negra de forma diferente da que vem sendo adotada, e dão detalhes do trabalho de pesquisa.

 

JORNAL DO BRASIL – Abordar a influência da população negra de origem africana na formação da cidade do Rio de Janeiro é muito interessante. Qual a origem da ideia?

Fernando Sousa e Gabriel Barbosa - A ideia começa a ser elaborada a partir da constatação de que é preciso termos novos olhares sobre a história do Rio de Janeiro, considerando a centralidade e a contribuição da população negra de origem africana na formação dessa cidade. Ao mesmo tempo, tínhamos o desafio de conferir destaque ao debate, que articula o ideário racista com o conjunto de justificativas que acarretaram na transferência da capital para Brasília, bem como suas consequências político-institucionais para o Rio de Janeiro. Apesar de toda a contribuição para a formação da cidade, ao longo da nossa história essa mesma população negra foi perseguida, criminalizada e considerada como uma ameaça ao poder constituído, especialmente na transição para o período republicano.

 


Um ponto alto do documentário é, sem dúvida, a inserção de imagens históricas e importantes depoimentos. Qual o critério adotado para resultar numa seleção tão adequada?

Trata-se de um trabalho de pesquisa exaustivo em arquivos, realizado com muita competência pela pesquisadora Alessandra Schimite. Esse trabalho foi antecedido pela etapa de desenvolvimento do argumento e do roteiro, em que buscamos trabalhar o conteúdo e a narrativa do documentário, identificando fontes e já mapeando possíveis entrevistados. Estamos trabalhando com uma perspectiva histórica muito abrangente, então tínhamos noção de que seria um desafio articular a narrativa em torno do argumento que, para nós, possui uma centralidade importante na obra, a saber: de que forma esse ideário racista, que permeia o pensamento das oligarquias brancas brasileiras, foi central na construção das justificativas que buscavam legitimar e defender a ideia de que era necessária a transferência da capital do Rio para Brasília? Essa foi uma pergunta que norteou a elaboração da narrativa do filme e que foi fazendo cada vez mais sentido na medida em que a gente aprofundava a pesquisa de conteúdo e documental. Ainda com relação a isso, entendemos que a transferência da capital do Rio para Brasília foi colocada em prática sem um debate público aprofundado no que se refere às consequências políticas e econômicas para o Rio de Janeiro. Ademais, nossa pretensão é contribuir para que esse debate seja aprofundado, mas considerando a importância do componente racial para as discussões que o filme possa alavancar, incluindo a urgência de se disseminar novos conhecimentos nos campos da memória e história da cultura afro-brasileira.

 


A criação de novas narrativas invertendo o olhar do sofrimento que é sempre associado à história da população negra é perfeita. Poderiam falar um pouco mais sobre isso?

No Brasil, ainda não temos um entendimento mais amplo por parte do público sobre os múltiplos significados da diáspora africana em nossa sociedade, especialmente numa cidade essencialmente negra como é o caso do Rio de Janeiro. O Rio é uma cidade negra, uma cidade-diáspora. Essa afirmação nos remete ao fato de que o Rio de Janeiro foi a cidade que mais recebeu pessoas escravizadas de várias partes do continente africano. Cerca de 2 milhões de pessoas foram trazidas violentamente para cá. Além disso, ao longo do século XX, os territórios dessa cidade experimentaram diversos processos de dispersão dessa mesma população negra de origem africana, escravizada durante o período colonial, perseguida e criminalizada ao longo do período republicano.
Nesse sentido, buscamos desvelar como a população negra forjou trajetórias individuais e laços comunitários em uma cidade-diáspora marcada pelas disputas em torno do projeto “civilizatório” das elites brancas, conferindo centralidade para uma abordagem que esteja assentada na força de lugares e personagens negros.

 

Principalmente em face do tema – ótimo, sem dúvida –, houve dificuldades no trabalho de pesquisa?

Foi um desafio muito grande buscar retratar a presença da população negra de origem africana na cidade do Rio de Janeiro através de gravuras, pinturas e desenhos do século XIX. Isso porque grande parte dessas representações foram cunhadas a partir de um olhar racista, que reforçava estereótipos e reduziam toda complexidade da diáspora africana a figuras humanas passivas, submissas e inferiores.

Nesse sentido, buscamos utilizar tais imagens articuladas com entrevistas, que colocam em questão justamente essa construção do ideário racista e que englobava todo o sistema escravocrata. Há alguns casos no filme em que uma imagem busca ir além dos elementos aparentes na mesma. Por exemplo: há uma gravura de Jean Baptiste Debret, publicada em sua ‘Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil’, que retrata uma cena urbana muito comum à época: duas mulheres negras e um homem negro cozinhando grandes panelões de angu, entre outras pessoas negras que se alimentam da comida comumente identificada à população escravizada. Entretanto, no filme esta imagem é exibida ao longo da entrevista do prof. Carlos Eugênio Líbano, que descreve o que se convencionou chamar de Casa de Zungu, estabelecimentos que vendiam a “comida do escravo urbano”, mas que também representava uma maneira de resistência e elaborações de possibilidades de vida contra e para além da escravidão, com suas redes de fuga e construção da sociabilidade entre as pessoas negras. Ou seja, ao longo da montagem do filme, nos colocamos uma questão que perpassa todo trabalho que se utiliza de imagens produzidas por outras pessoas e em variadas épocas: como não reproduzir e reificar estereótipos impregnados nessas obras?

Outra dimensão do trabalho de pesquisa que destacamos se refere a algumas imagens em movimento do Carnaval carioca e da cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XX que gostaríamos de trazer para o filme, mas que foram produzidas e são depositadas em instituições estrangeiras. Isso significa que os custos para licenciamento se multiplicariam consideravelmente e foram impeditivos para a sua utilização. Há muitas imagens que só conseguimos encontrar nessas instituições, em qualidade superior à encontrada no Brasil. Isso pode ser explicado por uma histórica desvalorização e desinvestimento do importante trabalho de preservação audiovisual no Brasil, embora existam algumas instituições brasileiras de acervos públicos que cumprem um papel fundamental nesse sentido, como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, a Cinemateca Brasileira, o Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual, dentre outros. Ou seja, há imagens antigas do Rio de Janeiro pertencentes a outros países, o que expressa uma incompletude em retratarmos a nós mesmos através de imagens de arquivo.