CINEMA
Abordagem da austríaca Emmi Pikler nas telas do cinema
Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 30/04/2023 às 16:20
Alterado em 30/04/2023 às 17:00
O filme investiga e apresenta na prática a abordagem criada pela pediatra austríaca Emmi Pikler, que já tem diversos adeptos e adeptas no Brasil. Com esse objetivo, acompanha o crescimento de Ravi, dos três meses aos três anos de vida, a partir dos cuidados e do olhar atento de sua mãe, Bianca.
Ao longo da primeira infância do filho, ela coloca em prática o legado e os ensinamentos da pediatra vienense nos quais o respeito à individualidade dos bebês, a promoção da autonomia através do brincar livre e a presença amorosa nos momentos de cuidados reforçam os vínculos e estimulam o pleno desenvolvimento motor, cognitivo, emocional e social da criança.
Consequentemente, compartilha suas alegrias, ansiedades e conquistas na criação do filho.
Mesmo ainda com pouca difusão por aqui, os estudos de Pikler vêm ganhando cada vez mais espaço no Brasil.
Radicada na Hungria, ela observou milhares de crianças e amadureceu, após a segunda guerra mundial, essa revolucionária abordagem, dedicada à educação infantil.
Inicialmente, a ideia de Bianca não era fazer um filme sobre seu filho, mas sim documentar e estudar seu desenvolvimento nas diversas fases. Mas ao chamar o artista plástico e cineasta Pablo Lobato para colaborar, a experiência se desdobrou, culminando na realização do longa-metragem, que foi filmado de 2013 a 2021.
“Nove anos se passaram desse encontro inicial até o filme que agora nasce”, explica Bianca.
Pablo é um dos criadores da Teia – Centro de Pesquisa e Produção Audiovisual, em Belo Horizonte. Sua obra é marcada pelo diálogo entre o audiovisual e as artes plásticas. Em sua filmografia estão os longas-metragens “Ventos de Valls” e “Acidente”, dirigido com Cao Guimarães.
Nascido em Bom Despacho, no Alto São Francisco (MG), em 1976, antes de ter as artes plásticas como campo de atuação, sua prática artística concentrou-se no cinema. Seus filmes foram exibidos em festivais como Locarno, Sundance e Rotterdam, entre outros.
Como artista plástico, seus trabalhos têm sido apresentados em mostras individuais e coletivas, em instituições de arte. Entre outras, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte do Rio e o MoMA em Nova York.
Em conversa com o JORNAL DO BRASIL, ele revelou a principal motivação para realizar “Dos 3 aos 3”, falou sobre o viés do seu cinema, a receptividade que espera para o novo filme e novos projetos.
JORNAL DO BRASIL - Qual foi a principal motivação para realizar “Dos 3 aos 3”?
PABLO LOBATO - Um encontro de vontades. Interesse por aquilo que ainda não é, pelo que está sendo, desejo de estar diante do humano em desenvolvimento, talvez tenham sido essas as principais motivações. Bianca Bethonico me convidou para olhar, acompanhar e gravar Ravi em crescimento, seu segundo filho. O intuito naquele momento não era fazer um filme e sim estudar e aprender com a criança. Além de mãe de Ravi, Bianca, que se tornou uma amiga, é pedagoga e estudiosa da Abordagem Pikler. Sua relação com a primeira infância se encontrou com meus interesses como artista.
Filmamos por cerca de 8 anos, entre 2013 e 2021. Nos primeiros três anos com maior constância, depois, alternando períodos com mais e menos filmagens. Eu e Bianca fomos nos conhecendo e encontrando um modo colaborativo, mais dedicado aos fenômenos presentes na formação da criança, sem deixar a vontade de fazer o filme atropelar essas vivências.
Tivemos bons momentos para aprender, escrever, conversar e ensaiar. Durante as pausas, olhávamos o que estava sendo colhido. A pandemia nos fez experimentar outros caminhos, convidando estudiosos e leigos para refletirem a partir das imagens que tínhamos começado a editar. Meu convite foi para que aceitássemos que as nossas experiências guiassem a feitura do filme e não o contrário.
Como você sabe, acompanho você já há algum tempo, desde “Acidente”, em Sundance, lá se vão muitos anos. “Dos 3 aos 3” foge um pouco do tipo do seu cinema, pelo menos a meu ver. Poderia falar um pouco mais sobre isso?
Há 10 anos não apresentava filmes no circuito cinema. Passei esses últimos anos bastante envolvido com as artes plásticas, no ateliê. Não parei de filmar e pensar no cinema, fiz alguns trabalhos audiovisuais, mas não me apressei em finalizar os longas que ficaram em gestação.
Meu trabalho tem resistido a se fixar em uma ou outra linguagem, em um ou outro estilo. Crio caminhos a partir das qualidades e sentidos que cada situação e material informam. Tecido, madeira, cobre, tinta, fruta, semente. Atuar no mundo de forma menos impositiva, mas sensível à escuta e ao que está diante de nós, trabalhar de modo colaborativo com os fenômenos, matérias, situações e pessoas, tem sido por aí.
Quando Bianca me apresentou a abordagem Pikler, logo percebi boas relações com minha prática. Os gestos, a postura da mão que Emmi Pikler pratica na condução da primeira infância, sua atenção ao espaço, tudo isso me inspirou. Passei a olhar para a criança como a fonte da pedagogia.
Observo a primeira infância e não vejo um terreno mais fértil do que ela para mudanças profundas e urgentes em uma sociedade como a nossa.
Ainda assim, você tem razão, “Dos 3 aos 3” é um novo cinema para mim.
Meus filmes até aqui ficaram bastante comprometidos com a arte, sem funções claras os guiando. Ao realizar “Dos 3 aos 3”, tínhamos um horizonte mais delineado. Queríamos aprender com Ravi e compartilhar o saber de Emmi Pikler. Foi preciso trabalhar com uma natureza poética e também instrumental.
Seus filmes apostam na força da imagem, na poesia, enfim, na dimensão reflexiva. É difícil manter essa sintonia?
Sintonia exige esforço, mas quando a criação gera bons encontros essa dificuldade fica mais leve. Cada filme é uma nova aventura. Com o “Dos 3 aos 3” a dificuldade maior foi caminhar com a poesia e encontrar uma imagem que não abandonasse o caráter instrumental da proposta. Bianca tem um interesse pela arte e uma grande sensibilidade, tudo isso nos ajudou.
Quando conversamos ainda em 2006 sobre “Acidente”, quanto à expectativa de receptividade, você disse que ele poderia ser muito bem recebido, mas também poderia ser considerado difícil, complexo, etc. etc. E agora, qual a expectativa para “Dos 3 aos 3”?
Apesar de ter sentido um bom retorno de amigos e pessoas próximas que assistiram, estou bem curioso com esse momento diante de um público maior. Como o filme vai ao encontro daqueles que gostam, estudam e têm intimidade com a primeira infância, podemos ter aí uma boa acolhida. A Abordagem Pikler está sendo bastante reconhecida e praticada no Brasil. Mas tem algo de diferente no filme. Senti uma falta da relação dele com outros filmes, tanto é que não o enviamos para festivais e decidimos ir direto para as salas de cinema. Fiquei até com vontade de criar um festival para filmes como esse (risos).
Tem algum novo projeto em mente?
Sim, em mente e em curso. Além dos trabalhos no ateliê, que não gostam de parar, estou fazendo outros dois longas pela produtora Claroescuro. Estou finalizando “Oroboro”, filme que aproxima “Grande Sertão: Veredas”, “A Flauta Mágica”, a adolescência e também a formação do humano. O outro, ainda com nome provisório, mas já filmado e em montagem, é “Abrigo”, um filme que deriva da experiência vivida em “Dos 3 aos 3”. Passamos 6 meses gravando em uma casa de acolhimento para crianças de 0 a 6 anos, onde promovemos uma intervenção institucional, introduzindo a Abordagem Pikler. Foi uma experiência belíssima. Estou também escrevendo um novo projeto dedicado ao artista e amigo Djalma Corrêa, que acaba de virar estrela.