Três personagens numa inevitável descida ao inferno
Grupo de amigos se recusa ceder à injustiça e resolve investigar crime brutal na noite paulistana de uma véspera de Natal
“A cidade dos abismos”, filme de Priscyla Bettim e Renato Coelho que estreia quinta-feira (11) nos cinemas, segue três personagens: Glória, mulher trans, Bia, jovem da classe média paulistana e Kakule, imigrante africano, que testemunham uma morte brutal na véspera do Natal.
O evento, vivenciado num bar decadente da capital paulista, muda o destino de suas vidas. Embora mal se conheçam, uma aliança é formada ali.
Indignados com os rumos da investigação do crime, os três se recusam a ceder à injustiça e decidem ir atrás dos algozes. No filme, a inevitável descida ao inferno é permeada pela amizade e pelo afeto.
O ponto de partida para o roteiro foram histórias que os diretores ouviram em incursões pela noite paulistana.
O elenco tem nos papéis principais Verónica Valenttino, Sofia Riccardi, Carolina Castanha e Guylain Mukendi, além de contar com a participação de Arrigo Barnabé, Claudio Willer e do Padre Júlio Lancellotti.
O filme já foi exibido em vários festivais: entre outros, no 18º IndieLisboa International Film Festival (Portugal), no 75º Festival Internazionale del Cinema di Salerno (Itália) e no 6º Festival Internacional de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro.
Priscyla Bettim e Renato Coelho são também pesquisadores e professores. “A cidade dos abismos” é o primeiro longa-metragem da dupla.
Em entrevista por e-mail ao JORNAL DO BRASIL, eles falaram sobre a origem do filme, o principal desafio que precisaram vencer para a realização e novos projetos.
JORNAL DO BRASIL - Como surgiu a ideia para a realização de “A cidade dos abismos”?
PRISCYLA BETTIM E RENATO COELHO - Sempre nos sentimos atraídos pelo centro de São Paulo, seus personagens e suas histórias, e passamos algum tempo em imersões noturnas por essa região. A cada madrugada íamos de bar em bar, flanando pelas ruas em direção a esses encontros fugazes, e inspirados pela dimensão espectral da arquitetura de locais como a Rua Aurora ou a Praça da República. Surgiu então o desejo de retratar de modo onírico aquilo que vimos e ouvimos, de falar sobre os marginalizados e excluídos, sem perder a poesia, e sempre levando em conta a dimensão do afeto.
Qual o principal desafio que precisou ser vencido para realizar o filme?
Fazer cinema no Brasil por si só já é sinônimo de desafios, ainda mais um filme de baixíssimo orçamento, que alia narrativa ao experimentalismo e rodado em película. A Renata Jardim, produtora do filme, brilhantemente fez um verdadeiro milagre com o orçamento que tínhamos, sem concessões facilitadoras. Ela nunca nos disse que não dava para fazer, sempre dávamos um jeito. E conseguir fazer esse filme com esse orçamento foi já de largada o maior desafio. Contamos também com um elenco e equipe que pensa e vive o cinema do modo que acreditamos, fazendo cinema de guerrilha e de coragem.
No desenvolvimento do filme há muitas outras formas de arte, o que certamente possibilitará uma identificação imediata com os espectadores. Havia essa intenção ou foi algo que surgiu naturalmente no decorrer do processo?
Nos sentimos muito próximos de outras formas de arte, e foi natural o nosso cinema dialogar com a poesia, o teatro e a música. A poesia pra nós é um modo de ver a vida, de enxergar as coisas. Poetas surrealistas como Claudio Willer e Roberto Piva nos revelaram que para além do realismo e da normalidade está o delírio e o sonho, não como algo que não existe, mas que apenas não é visto por olhos parcialmente cegados pelo automatismo dos sentidos. Sonho e delírio é apenas um modo de ver além, perceber as forças ocultas que agem aqui e agora, a todo instante. Não nos interessa o naturalismo, e cantar e declamar poesia nos parece mais revelador.
Já há algum novo projeto em mente?
Sim, estamos a todo vapor na pré-produção do nosso segundo longa metragem, intitulado “As florestas da noite”, que será filmado em julho também no centro de São Paulo, em 16mm e em preto e branco.