CINEMA

‘Seus Ossos e seus olhos’, de Caetano Gotardo, estreia quinta-feira

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
redacao@jb.com.br

Publicado em 19/06/2023 às 16:40

Alterado em 19/06/2023 às 16:46

Caetano Gotardo, diretor de 'Seus Ossos e seus olhos', que estreia dia 22 de junho Foto: Descoloniza Filmes

Após concorrer ao Urso de Ouro na competição oficial do Festival de Berlim, com “Todos os mortos”, em 2020, Caetano Gotardo, premiado diretor de filmes como “O que se move” e o curta “Areia”, apresenta seu novo filme, “Seus ossos e seus olhos”.

A ideia para o filme surgiu em 2009, enquanto Gotardo finalizava o curta “O menino japonês”. Na sala de mixagem, o diretor e roteirista fez uma anotação sobre o deslocamento entre som e imagem e a possível relação disso com a memória. Essa seria a origem do futuro longa sobre um jovem cineasta, interpretado pelo próprio Gotardo, que vivencia diversos encontros com amigos e desconhecidos. Essas interações acabam transformando sua vida e seu processo criativo.

A história segue João, cineasta de classe média, que passa por uma série de encontros com pessoas como Irene, sua amiga de longa data; Álvaro, seu namorado; Matias, um rapaz que conheceu no metrô e com quem se envolve sexualmente, entre outros conhecidos e desconhecidos. Esses encontros o afetam e revelam aos poucos um jogo de tempos que mistura vida e processo de criação, presente e memória.

O filme já passou por vários festivais: 48º Internacional Film Festival Rotterdam, 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, 16º IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa, 27º Filmfest Hamburg, 57º Viennale – Vienna Internacional Film Festival, 11º Panorama Internacional Coisa de Cinema, 27º Festival Mix Brasil.

Gotardo, nascido em Vila Velha (ES) em 1981, e morador da cidade de São Paulo desde 1999, formou-se em Cinema pela Usp em 2003.

Escreveu e dirigiu dez curtas-metragens, entre os quais, “Merencória” (2017), “O menino japonês” (2009) e “Areia” (2008), todos exibidos e premiados em diversos festivais brasileiros e internacionais, como a Semana da Crítica do Festival de Cannes, o Festival de Rotterdam, o Festival de Havana, o Zibeb – Bilbao, o Festival de Locarno, a Janela de Cinema do Recife, o Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo e o Cine Ceará. Uma retrospectiva de seus curtas foi realizada pela Cinemateca Francesa em outubro de 2013, em Paris.

Seu terceiro longa-metragem, “Todos os mortos” (2020), escrito e dirigido em parceria com Marco Dutra, estreou na competição oficial do Festival de Berlim em fevereiro de 2020, seguindo depois para outros festivais, como o de Gramado, onde ganhou três Kikitos.

Desde 2006, ele integra o coletivo de realizadores Filmes do Caixote, grupo de cineastas que colaboram constantemente nos projetos uns dos outros. Em 2012, lançou o livro de poesia “Matéria” (editora 7Letras), junto a Marco Dutra e Carla Kinzo.

Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, Gotardo falou sobre a motivação para ter realizado o filme, o extenso trabalho de pesquisa para realização do roteiro e sua expectativa para o lançamento.

 

JORNAL DO BRASIL: Como surgiu a ideia e qual a principal motivação para ter realizado o filme?

GOTARDO: As primeiras ideias para este filme surgiram em 2009, quando eu estava finalizando meu curta-metragem "O menino japonês". Estava trabalhando na mixagem do filme, e há esse momento em que se separam os diferentes sons (vozes, ruídos, ambiente, efeitos, etc.), e vamos vendo e revendo a imagem com as diferentes camadas de som - e a percepção do que vemos vai se transformando a cada repetição. Fiz uma anotação no dia, imaginando um personagem que assistisse a um momento de sua vida sendo manipulado assim. Porque me pareceu que, de alguma maneira, isso tem muito a ver com as diferentes percepções que cada pessoa tem de um mesmo momento, ou ainda com as reconstruções que fazemos na memória das coisas que de fato vivemos. Também pensei muito em como esse jogo de percepções subjetivas afeta nossas relações afetivas, nosso entendimento do mundo, nosso entendimento, ou não, de nós mesmos em meio aos outros. Esse foi o ponto de partida para o filme, e são questões muito vivas para mim, das quais de fato eu queria me aproximar. Passei muito tempo (nove anos!) desenvolvendo a ideia, fazendo anotações, pesquisando, observando, experimentando - cheguei mesmo a fazer alguns experimentos filmados anos antes de fazer o filme. Nesse tempo todo fiz outros projetos, mas "Seus ossos e seus olhos" sempre esteve presente, não era algo que eu tinha deixado de lado. Só precisou de tempo mesmo para ganhar corpo, ganhar forma. E o projeto também foi sendo afetado pelos acontecimentos ao meu redor, no Brasil principalmente. Fui percebendo que fazia sentido deixar espaço para isso entrar e transformar o filme, era da própria natureza do projeto pensar nessa relação entre as subjetividades e os fatos do mundo. Alguns parceiros criativos, como a produtora Lara Lima e a fotógrafa Flora Dias, foram se juntando. Então, em 2018, finalmente consegui chegar de fato a um roteiro, convidar as outras pessoas do elenco e da pequena equipe e filmar.

 

Além de dirigir, você também atua no filme – isso é bem interessante. Já entrevistei vários diretores que fizeram isso e tive respostas bem diferentes. Fale um pouco mais sobre isso, é mais difícil? Enfim, como funciona?

Minha primeira aproximação com a criação artística foi a escrita. Mas, logo depois, ainda bem novo, comecei a atuar. Tive várias experiências no teatro amador, como ator, ao longo da infância e da adolescência. Depois fui estudar cinema, mas sempre mantive uma relação com o teatro e com a atuação, mesmo que isso tenha saído do centro do meu campo de atividades. "Seus ossos e seus olhos" já nasceu como parte de uma pesquisa minha como ator, junto com a pesquisa de roteirista e diretor. Nesse projeto, essas coisas eram indissociáveis desde a origem. Tanto que alguns dos atores comentaram comigo que sentiram que, ao contracenarmos, nos ensaios, eu dava caminhos de direção para eles por meio da minha atuação. Achei isso interessante. Havia também, como pesquisa importante para o filme, um estudo de movimentos, um pensamento em torno dos gestos que se aproximava de alguns aspectos da dança contemporânea. Isso também foi algo que fui desenvolvendo como estudo para o filme ao longo dos anos, no meu próprio corpo. Então, foi bastante orgânico para mim dirigir e atuar. Mas para isso, como tinha sido no curta "O menino japonês", em que também atuo, foi fundamental trabalhar com um elenco e com uma equipe de pessoas muito mergulhadas no projeto também, e com quem tenho uma relação de colaboração e profunda confiança. Nós filmamos em apenas oito diárias, então era um set muito concentrado, mas também com uma intensa troca. Nos ouvíamos com bastante atenção, pensávamos juntos nas questões que iam surgindo. Além dos atores, a equipe tinha apenas seis pessoas, contando comigo. Então era possível cada um se colocar, criar junto mesmo. Eu participava de todas as escolhas antes de filmarmos e assistia a tudo logo depois, havia para mim uma divisão mental entre direção e atuação no momento do set que funcionava bem. Mas isso só acontecia porque estávamos todos realmente juntos naquele instante.

 

Você já falou em entrevistas sobre o extenso trabalho de pesquisa para realização do roteiro. E é realmente uma parte muito fundamental para qualquer filme. Como foi em “Seus ossos e seus olhos?

Neste filme, o tipo de pesquisa foi muito diferente da pesquisa para "Todos os mortos", por exemplo, que também foi muito diferente de "O que se move". Cada projeto vai apontando um caminho. Em "Seus ossos e seus olhos", como eu já disse, fiquei muito atento a coisas que estavam ao meu redor. A maneira como as pessoas contavam suas próprias histórias, as diferentes versões sobre os mesmos fatos no campo afetivo ou cotidiano, as imprecisões da memória. A palavra tem um lugar central no filme, então eu ouvi muito, anotei muito, fiz diversos esboços de textos, diálogos, narrativas. Também me interessava pensar algumas questões de classe, então houve muita observação nesse sentido, em torno de pequenos comportamentos de uma certa classe média, um tanto instável, de esquerda, numa cidade como São Paulo. Além disso, fui muito alimentado por outras artes - poesia, artes plásticas, dança, música, teatro. Busquei muitas obras dessas outras expressões artísticas que dialogassem com o filme. Porque me interessava lidar no filme com a arte como parte da vida mesmo, não como algo que esteja separado dos outros elementos do cotidiano. A criação e a apreciação artística são elementos do dia a dia dos personagens, como qualquer outro elemento. Constituem suas vidas, como uma conversa, um encontro, um deslocamento na cidade, uma obrigação de trabalho, uma refeição, uma conta a pagar, um beijo. Então, a partir dessas coisas todas, fui compondo a teia do roteiro, uma estrutura razoavelmente rígida que falasse desse campo complexo das percepções subjetivas por meio dos diálogos, mas também pela própria forma - através das repetições, das variações, das diferentes leituras que vão se abrindo, mas buscando que nada disso estivesse engessado, e sim insuflado de vida, acaso, surpresa, tentativa.

 

Qual sua expectativa para o lançamento e depois para continuidade certamente em festivais, mostras etc.?

Este filme está fazendo um caminho bem peculiar. Ele passou por festivais e mostras em 2019. Estreou aqui no Brasil na Mostra de Tiradentes e internacionalmente no Festival de Rotterdam, na Holanda. Depois passou por festivais na Alemanha, na Áustria, em Portugal, nos Estados Unidos... Teve uma carreira bem interessante nesse circuito de festivais voltados a um cinema mais independente. Estive em várias dessas sessões, tive debates muito bons. Parei um pouco os trabalhos com o filme para lançar meu longa seguinte, "Todos os mortos", na competição do Festival de Berlim. E então, logo em seguida, veio a pandemia. Com isso, não encontramos caminho para o lançamento comercial de "Seus ossos e seus olhos". Agora, a partir de um edital de lançamento muito interessante da SPcine, que teve um olhar sensível para as produções pequenas que tanto foram afetadas pelo que vivemos nesse período recente, finalmente vamos lançar o filme no cinema. É um lançamento pequeno, mas voltado principalmente para promover encontros e conversas. É o que eu mais espero, que o filme possa chegar presencialmente às pessoas e gerar debates, interações, trocas. Com a minha presença, sempre que possível, mas também independente dela. Que o filme encontre essa posição de que falei antes, como um elemento vivo no cotidiano de algumas pessoas.

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