Tantos Caetanos
Foi tanta estrada trilhada, tantos sons, tantas canções, que o menino baiano hoje é um homem velho, que “deixa a vida e morte para trás, cabeça a prumo segue rumo e nunca, nunca mais”. Assim lá se vai e vai, com lenço, senso e documentos esse leão do Recôncavo que abraçou 80 anos em 2022, abraça o mundo e a Bahia com igual intensidade, pai de Moreno, Zeca e Tom, irmão de Bethânia, de Roberto, de Nicinha, de Rodrigo, de Clara, de Irene e de Mabel, irmão de todos nós, canoeiro filho de Dona Canô, dono de boa parte do imenso e abaetético coração baiano.
De Santo Amaro – de onde veio todo o jogo de corpo que o samba de roda lhe deu – à Europa – onde “London, London” nasceu e de onde veio a noção de que fora mesmo expulso de sua terra, foi longa a caminhada contra o vento. A Bahia estava triste, a máquina mercante trocava tudo pelo imediatismo, aqui vivíamos numa angústia e desolação de dar dó, e em Londres aquela garoa que eles chamam de fog devia provocar uma tristeza infinita.
Cadê a paz repleta de ciúmes quando “dorme o Sol à flor do Chico, meio-dia”, e “tudo esbarra embriagado de seu lume”? Juazeiro, Petrolina nem se lembram; mas não há como esquecer imagens de uma “televizinho” em preto e branco mostrando um conterrâneo cabeludo e magricela dizendo que a vida é, sim, ir, “por que não?”, eis que havia, em momentos de tanta dureza, Alegria, Alegria!
Como tudo isto começou? Nos primeiros anos deste século eu fiz, juntamente com o músico e pesquisador Charles Gavin (a convite da empresa Universal Music), uma série de entrevistas (acho que meia dúzia) com Caetano Veloso, com o objetivo de transformar os depoimentos em lindo livro-catálogo a acompanhar caixa com todos os CDs lançados por ele até 2002. E comentados, um por um, pelo próprio artista (a bela foto de Caetano com os pais, arquivo da família, foi publicada na folha de rosto do livro, a que demos o título de Tantas Canções).
Como tudo isto começou foi a primeira pergunta que fizemos, na abertura dos trabalhos. Sua resposta:
“Em Santo Amaro, claro. Talvez com as rodas de samba que ainda existem por lá, e que se refazem de vez em quando, nas festas de minha casa, onde a gente curtia e ainda curte um samba de roda, na varanda ou no pátio de casa. Hoje é menos frequente do que quando eu era menino, mas não desapareceu. Edite do Prato tocava lindamente. Minha mãe também tocava prato. Tocava-se e cantava-se aqueles sambas lindos, tradicionais, com muitas variações. Nunca parei de conhecer sambas para mim novos. Até hoje, de vez em quando, encontro pessoas de lá que cantam novos sambas que ouviram por ali”.
Claro que quisemos saber, também, sobre as experiências de exílio e de Brasil vividas por ele, juntamente com Gil: “Como tanta gente, também sofri as consequências da ditadura. Fui preso e depois exilado. Mas não fiquei com bronca do país; estranho, mas eu simplesmente achava que aquilo não poderia representar o Brasil. Eu representava o Brasil, não aquilo. Roberto Carlos representava o Brasil, não aqueles caras que me prenderam”.
Pegando o mote da representatividade, tão em moda nos dias de hoje, digo que Caetano me representa. Por que resolvi falar sobre ele neste momento? Como o próprio diria, olhar de soslaio, descaso e fastio, “sei não...”