O abalo e a reestruturação mundial

Por

Marcio Pochmann *, Jornal do Brasil

RIO - Até o momento, os debates não convergem ainda para o entendimento se a atual crise mundial é uma grande recessão ou uma depressão econômica comparável à de 1929. Na ausência de compreensão comum a respeito disso, ganha maior importância a difusão de análises econômicas cada vez mais contraditórias.

De um lado, os integrantes do pensamento econômico ortodoxo (neoliberal), que hegemonizaram o discurso até 2007, sustentam agora o urgente desmonte das políticas anticíclicas adotadas face à perspectiva de retomada das economias para uma situação pré-crise internacional. Os sinais disso, notados pela recuperação das bolsas de valores e do mercado financeiro, bem como pela elevação dos preços das commodities, tenderiam a apontar para a normalidade dos mercados desregulados e para a volta da compressão dos gastos públicos com aumento da tributação sobre a população.

De outro, os defensores do pensamento econômico heterodoxo (antineoliberal) alertam para o novo risco de bolha especulativa presente no atual comportamento das bolsas de valores, do mercado financeiro e dos preços das commodities ainda descolado de uma considerável melhora na economia real. Por conta disso, caberia manter a condução das políticas anticíclicas, assim como aprofundar as ações de reformulação da governança mundial (revisão do papel de agências multilaterais como FMI e Banco Mundial) e de regulação e promoção do desenvolvimento em novas bases econômicas, sociais e ambientais.

Para além das interpretações sobre a crise mundial e o papel das políticas governamentais adotadas, cabe ressaltar o movimento emergente de reestruturação das economias. Três evidências disso chamam atenção tanto pela rapidez com que se difundem como pela dimensão estrutural que apresentam, nem sempre percebidas pelo conjunto da sociedade.

A primeira evidência pode ser verificada pela conformação de outra partilha mundial decorrente do esvaziamento relativo do poder dos Estados Unidos no exercício de uma ordem unipolar. Em contrapartida, o avanço do mundo policêntrico, com novas regiões exercendo a promoção do desenvolvimento supranacional, apresenta-se para o contexto sul-americano a inédita oportunidade de o Brasil contribuir decisivamente na integração regional do verdadeiro desenvolvimento.

A segunda evidência corresponde ao recente fortalecimento do papel do Estado, associado, em parte, ao apoio de grandes empresas na competição global e à conformação de novo padrão de políticas públicas matriciais. A forte transferência de recursos públicos às grandes corporações transnacionais (bancos e empresas não financeiras) indica tanto o aprofundamento da concorrência intercapitalista como a maior competição entre os próprios Estados nacionais. A posição brasileira, em virtude disso, volta-se também para a reestruturação patrimonial de empresas privadas nacionais e de estatais, acompanhada da perspectiva de maior fortalecimento das ações para as micro e pequenas empresas no espaço nacional.

A terceira evidência, por fim, localiza-se na concentração de esforços técnico-científicos voltados para a geração de um novo modelo de produção e consumo menos degradante do meio ambiente. Isso porque a eficácia das ações públicas que procuram minorar as emissões de gases por meio da conscientização, tributação e promoção de alternativas ambientalmente sustentáveis pressupõe outra base tecnológica para produzir e distribuir. Ademais das iniciativas em torno da matriz energética renovável, amplia-se a importância da implementação de estrutura bioindustrial capaz de promover a geração de crescente nível de empregos verdes.

Neste campo, em especial, o Brasil destaca-se por já possuir uma matriz energética das mais limpas do mundo, como deter a oportunidade de construir a partir da exploração petrolífera do pré-sal o seu novo projeto nacional de desenvolvimento, que atenda à perspectiva de inclusão de toda a sociedade. Isso tudo se torna plenamente possível nos dias de hoje, embora dependa efetivamente da existência de maioria política realmente comprometida com essa perspectiva.

Após 24 anos de democracia consolidada no Brasil, não parece haver o que possa impedir a consagração de um grande projeto de nação soberana, justa, solidária e próspera. A não ser o obstáculo político de ousar na direção de transformar a crise mundial atual na excelente possibilidade de estimular avanços econômicos, sociais e ambientais.

* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pequisa Econômica Aplicada (Ipea)