O maldito e fascinante Salinger
Mauro Santayana, Jornal do Brasil
RIO - Toda obra de ficção é autobiográfica e, quando o ficcionista consegue trazer as emoções de seu tempo às próprias reminiscências, quase sempre produz uma obra-prima. É o que ocorreu aos grandes criadores, de Cervantes a Jerome D. Salinger. O escritor norte-americano, que morreu quarta-feira em seu refúgio, em New Hampshire, combinou, no relato magistral de The Catcher in the Rye, sua angústia pessoal e as cruciais indagações de sua época. Filho de pai judeu polonês e de mãe de família escocesa e irlandesa, Salinger, ao escrever o livro, aos 30 anos, revisita sua adolescência, enriquecido com a experiência austríaca nos meses que antecederam a guerra; com o desembarque como combatente na Normandia, onde se relacionou com Hemingway; com o espantoso cheiro estranho e inesquecível de carne queimada, durante a libertação de remanescentes dos campos de concentração na Alemanha, e a leitura de grandes autores, de Kafka a Coleridge, passando, entre outros, por Lorca, Proust, Henry James, Dostoiévski, Rilke e Blake.
O grande sucesso do livro está na combinação dos vários sentimentos de quem descobre, aos 16 anos, com os hormônios, o sexo sem ternura e faz amizade com adultos estranhos ao seu ambiente familiar e escolar e com a grande literatura, que o mundo é um lugar perigoso, inóspito.
As memórias da infância e há livros maravilhosos sobre esse tempo, como The green years, do escocês A.J.Cronin, injustamente esquecido em nossos dias são mais singelas. Os autores narram a descoberta de um mundo ainda fantástico, com suas cores, seus jardins, suas estrelas e os adultos da família. A adolescência é outra realidade. Pouco a pouco e muitas vezes ainda na infância avançada o pai deixa de ser apenas o carinhoso provedor. É homem como os outros, com seus negócios, sua brutalidade, suas mentiras, e que habitualmente cheira a álcool. A mãe, enquanto a infância se esmaece, também começa a perder seu encanto. Os irmãos são ora companheiros, ora competidores. O adolescente é um estrangeiro, em casa e fora dela. No princípio, o exterior é a liberdade, com os amigos novos, a formação de grupos, primeiro na escola, depois fora dela, nas praças e ruas, nos bares e cafés, e, em nosso tempo, nos shopping centers. É um tempo de expectativas, e mais de dúvidas do que de esperança. De repente, descobre que as ruas são também estranhas, e nem todos os adultos que conhece merecem respeito.
O grande êxito do livro de Salinger foi o de sua linguagem ousada e de seu dramático pessimismo. A ele se atribui, provavelmente sem muita razão, o surgimento da rebelião juvenil dos anos 50, explorado com êxito pelo cinema, em filmes como Rebel without a cause, de Nicholas Ray, de 1955, com James Dean. O fato é que tanto o assassino de John Lennon, Mark Chapman, em 1980, quanto John Hinckley, que atirou em Reagan, em 1981 (ambos tinham 25 anos), citaram o livro-chave de Salinger como leitura inspiradora.