Pensar o ser humano depois de Auschwitz

Por

Leonardo Boff, Jornal do Brasil

RIO - Recordamos neste ano os 65 anos do holocausto de judeus perpetrado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente em Auschwitz, na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas, sejam de Hans Jonas do lado judeu, sejam de J. B. Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: como pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumanidade pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá . O nacional-socialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss (1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia, entre 1946 e1947. e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de 2 milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a banalidade da morte de que falava Hannah Arendt.

Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequeno burguês normal. No final, antes de morrer, escreveu: A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau . Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do Führer de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque o chefe sempre tem razão . Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites, e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. O olhar suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes comenta Höss nunca mais esquecerei . Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, sejam políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.

Este risco nos cerca, pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desequilibrar o sistema da Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.

Leonardo Boff é teólogo e autor de Tempo de transcendência: o ser humano como projeto infinito (Vozes, 2009).