A hora da bailarina
Era São Paulo, eu em cartaz com a peça L´O musical, texto e direção do encantador Sérgio Maggio, na qual eu fazia o papel de uma lésbica em um caso com a personagem da adorável Ellen Oléria, em pleno fevereiro. Entro no táxi. Motorista bonitão, camisa regata justa e rosa goiaba, pele hidratada, barba bem feita, cabelo cortado, cheiroso. Um homem cuidado. E sem musculatura ostensiva. Estava bem. “Você já reparou que eles vão tomar conta do carnaval?” Eles quem? “Os viados. Porra, a cidade tá assim, ó! E o pior que parece que tenho sangue pra isso. Agora mesmo queriam entrar 5, tudo de maiô, cheios de óleo e purpurina. O óleo eu nem ligo, mas a purpurina, pô?” Um monte de gays não me incomoda não, você é homofóbico? “Não, eu não, tenho amigo que é. Fala que as bichas são promíscuas, que vão com todo mundo. Mas eles não entendem. É que homem é objetivo: o sujeito vai no banheiro, olha para o negócio do cara, gostou? Aí eles se entendem, sem falar uma palavra, resolve o negócio ali mesmo, às vezes no meio do dia e depois vai trabalhar tranquilo. O cara é prático. Mulher não, mulher você fica, às vezes, uma semana no ouvido dela, gastando, sem ter certeza de que vai comer no final. Já, homem, não perde tempo.” Ah, então você prefere homens? “Não, que isso? Sou casado, tenho um filhinho; mas viado não me perdoa não, parece que tenho sangue.” Então você acha mulher muito trabalhoso? “Demais! Mulher é cheia de nhém nhém nhém. Homem não, quer quer, não quer, não quer.”
Essa prosa somada à milhares que venho trançando com os mais diversos tipos de gente nessa vida, nos leva a refletir que o “monstro” da sexualidade, esse monstro na qual a mesma foi transformado, faz com que exerçamos um grande auto desconhecimento negando nosso desejo e nossas preferências. Esse taxista podia ser gay. Talvez seja. A admiração pela grega dinâmica do desejo masculino à qual aquele homem se referia pode nos levar a crer que ele se identifica mais com este tipo de encontro do que com outro. Acho que há um grande imbróglio no bojo da nossa sociedade que teima em se ajustar às regras heteronormativas. Regras essas que são em geral cumpridas só quando ninguém está vendo. Assim não fosse, não teríamos tantos “fregueses” para a quantidade de travestis que nossa intolerância joga na prostituição. Talvez com a saída dessa população vulnerável das ruas, desse povo que sofreu bullying na escola e que ainda não é aceito no mercado de trabalho, nos provoquemos uma implosão na sociedade. Quando alguma destas profissionais saem da rua, para quem o doutor Romão Bilbeck Alcântara Carvalho vai dar o cu semanalmente? Criamos uma linha perigosa escondendo a nudez, fazendo cocô e xixi escondidos de todos, como se fosse um crime; escondemos a quatro chaves nossa intimidade como coisa errada. É como se não quiséssemos que outras pessoas tivessem a certeza de que também nos contorcemos nas caras de gozo. Pelados dentro das nossas roupas seguimos no segredo.
O carná traz essa importância, ninguém tem dono, pode sair vestido da sua fantasia. Tira-se a gravata, entram o turbante, os brilhos, o esplendor. Tem gente que não consegue tirar a camada grossa de burocracia que se instala no corpo. Então pode-se ver nitidamente aquele colar de havaiana exalando tristeza sobre o peito de um homem ausente da festa. Mas grande parte cai dentro e é bom de ver. Nos últimos tempos tem me chamado especial atenção a profusão de bailarinas. Parece que aumentou. Não contei, mas mais homens se vestem de bailarinas do que mulheres. Faz sentido, elas podem. Muitos rapazes ainda brigam pelo direito de estudar balé. A grande maioria nem tenta. O machismo é causador de guerra, mas é a bailarina que é campeã de fantasia masculina no carnaval! Com a tosca limitação do diverso desejo humano, o ser se vê obrigado a caber no binômio homem/mulher, mesmo tendo a heterossexualidade queimado tanto seu filme com muitos casamentos fracassados. A bailarina do carnaval é desejada o ano inteiro. É preciso um lugar para que o homem exerça sua “viadagem”, sua parte lúdica, sua frescura, sua purpurina. Independente da identificação com os gêneros, todo mundo tem direito a curtir variadas formas de beleza. Aprisionar a estética masculina é reducionista e não forja o masculino. O que forja é falso. A bailarina mora lá dentro e sai do armário uma vez por ano.