Me vi no cinema

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"Café com canela" tem cheiro, sabor e escolhas que resultam numa finíssima trama

Se, na primeira vez, o filme “Café com canela” me avassalou, agora então, sem qualquer cerimônia, atravessou meu coração! Estou, desde menina, chafurdada na magia dessa sétima arte que tanto admiro e na qual também trabalho. Portanto acostumada às salas de cinema e sua película tão parecida com sonho. Lo que passa és que o filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa me é inaugural e o é para o cinema brasileiro, que é também o do mundo. Ao falar a partir da própria aldeia com extrema maestria, Cachoeira, cidade do Recôncavo onde se passa a premiada obra, consegue abrigar nos seus 122 minutos todas as Áfricas e as não Áfricas também. É de e sobre o afeto. A afetividade é sua liga, argamassa, presença invisível e aderente em todos os “frames”. É o pontilhado discretíssimo que forma a imagem. O filme foi identificado já em seu lançamento em Brasília como uma obra de afeto. E aí traz o mundo inteiro no bolso. Não só pelo afeto ser uma forma de conhecimento, como afirma Espinosa, mas porque, em seu bojo, a humanidade se esculpe. Tudo passa por essa via: os primeiros cuidados, a autoconfiança, o autoconhecimento, a relação com o outro, com o trabalho, com a natureza, com a política... tudo passa pela estrada do afeto. Tramas urdidas com esta linha decidem o jogo da vida. Por causa do afeto ou de sua falta, muitas tramas se banham em dramas. Mas então é inaugural por que, se muitos filmes falam de afeto, sua doença, seu avesso, que é a guerra? É que o filme me atravessou por identificação! Vi os aniversários lá de casa. Vi minha madrinha, tios, primos, minha gente alegre na tela do cinema. Normal. Bebendo cerveja de bar, contando piada, sem chororô estereotipado, e tirando sempre onda do sofrimento. Sem negá-lo. Tirando de letra a pesada lida da vida de uma etnia que experimenta há séculos uma realidade estruturalmente racista. E tem que sobreviver. E arrumar saúde. E durar pra virar o jogo sem ser abatido em “pleno voo”, como diz Martha Medeiros. Mas o filme não fala disso. Não precisa. Sua prova factual é irrefutável. O filme é trágico sem ser triste. Está ali a dona morte visitando a realidade exposta, mas tudo é costurado na linha da oferenda, no caminho da generosidade, fundamento matriz da filosofia africana, sem a qual não teríamos sobrevivido até aqui.

Bem dirigido, com atores que parecem ter nascido ali, Valdinéia Soriano, Babu Santana, Aline Brunne compõem um primoroso elenco que põe a gente íntimo daquela onda. “Café com canela” tem cheiro, sabor e escolhas que resultam numa finíssima trama editada com variações dos pontos de vista, dos ângulos, dos olhares e ainda da metalinguagem, uma vez que o cinema desse filme fala de cinema e nos assiste. Ousadia esta só encontrada nos olhares impetuosos dos pioneiros ou no chão seguro dos veteranos. Os jovens diretores exerceram ousadia sem precisar gritar. Parecem ter certeza da história que querem contar, e confiam na rede de amparo da cultura cooperativa que ainda rola nos subúrbios e nas cidades pequenas brasileiras, deixando um cheiro de sonho, de utopia no ar. A obra nos leva à verdade, ao documento da vida. Um tratado de memória une o cinema de Glenda e Ary a nós. Não há memória sem afeto. Nas sessões cada sala pulsava, chorava e eclodia em espasmos gargalhantes em constantes tiradas sempre inesperadas de um enredo a cara do nosso povo. Há 34 anos, desde Adélia Sampaio, não se via um filme dirigido por mulher negra por aqui. Atravessou meu peito porque nunca tinha visto o som do cabelo crespo sendo penteado em nenhuma obra artística brasileira oficial exposta ao grande mercado. Chorei. O barulho daquele pente naquele cabelo crespo é o som da minha intimidade, da intimidade feminina negra. O som da nossa beleza. Peculiar: arma-se o cabelo assim, molda-se. Não sei quantos quilômetros de cabelos lisos eu já vi nas telas nas mãos das escravas só penteando sinhás, até chegar esse dia do “Café com canela”. Aceita uma xicrinha?