Por Coisas da Política
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COISAS DA POLÍTICA
Tão perto e tão longe da vacina da Covid-19
Publicado em 24/01/2021 às 08:16
Alterado em 24/01/2021 às 09:13
O general José de la Cruz Porfírio Díaz Mori liderou o Exército na Independência do México contra as forças do Imperador Maximiliano I, em 1867, e governou o país com mão de ferro. Só foi apeado do poder quando Francisco Madero se insurgiu à sua 6ª tentativa de se eternizar no comando do país (depois do ditador afastar todos os concorrentes em 1908) e Madero liderou a Revolução Mexicana, junto com Francisco “Pancho” Villa e Emiliano Zapata, em 25 de maio de 1911. Mas Porfírio Díaz passou para a história por uma frase lapidar que marca o complexo mexicano ante o poderoso vizinho ianque. “"Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos".
Neste semi-isolamento da pandemia, depois de ver duas ótimas séries que mostram como se faz política democrática (a francesa “Marseille”, 3ª cidade do país, tendo como grande personagem o prefeito vivido por Gerard Depardieu e suas negociações na Câmara local, influenciada pelas mudanças políticas em nível nacional; e “Borgen”, que trata da ascensão de uma política de centro que vira Primeiro-ministro da Dinamarca, país com população menor que os 6,7 milhões de habitantes da cidade do Rio de Janeiro), estou vendo “Monarca”, Trata-se de uma série produzida pela atriz mexicana, naturalizada americana, Salma Hayek, e que foca nas relações da família Carranza, dona da Monarca, uma destilaria de tequilas e vários hotéis no México.
Quem estudar um pouquinho a história moderna do México saberá a importância dos Carranza (não é “spoiler”). Após governar o México por três anos, Madero foi destituído por um golpe do general Victoriano Huerta. Mas este não resistiu, muito, sendo removido por um golpe do exército constitucional, comandado por Venustiano Carranza, que trocou a velha e desgastada Constituição de 1857 pela nova Constituição do México, de 1917 (mesmo ano da revolução russa), promovendo, enfim, as reformas sociais reclamadas por Villa e Zapata.
Carranza foi assassinado em 1920 por outro revolucionário (Álvaro Obregón). Mas Obregón foi sucedido por Plutarco Elías Calles [nome de um personagem da divertida série mexicana “100 dias para enamorar-nos”] e Obregón foi reeleito em 1928, mas assassinado antes que pudesse assumir o poder. Então, em 1929, Calles fundou o Partido Nacional Revolucionário (PNR), mais tarde rebatizado de Partido Revolucionário Institucional (PRI) que ficou com o controle da máquina do Estado mexicano por 70 anos. Só em 2000, o PRI perdeu o comando do país, quando foi eleito Vicente Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN). Desde 1º de dezembro de 2018, o México é governado por Andrés Manoel Lopes Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), um populista de esquerda, que tem mandato de seis anos.
Conhecer a história dos países é fundamental na diplomacia e parecia ser obrigatório no Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas no Itamaraty, antes da chegada de Ernesto Araújo ao cargo de ministro das Relações Exteriores do governo de Jair Bolsonaro. Em palestra à turma dos formandos no IRB, em outubro, o chanceler fez uma virulenta defesa do globalismo (pregado por Donald Trump, que ainda almejava a reeleição como presidente dos Estados Unidos) e disse que era melhor o Brasil ser pária no mundo se tiver de ficar sozinho na defesa da liberdade. O Barão do Rio Branco e os chanceleres mais famosos - como Oswaldo Aranha, que presidiu a Assembleia da Organização das Nações Unidas, que aprovou a criação do Estado de Israel, ou Azeredo da Silveira, que inaugurou a política externa independente do governo Geisel, quando o Brasil ficou vulnerável na 1ª crise do petróleo, em 1973 e precisava conquistar novos aliados e novos mercados (reduzindo a dependência dos EUA e dos países europeus) - devem ter-se revirado nas tumbas com as declarações retumbantes de Ernesto Araújo.
Sem nunca ter chegado ao cargo de Embaixador, Araújo foi promovido a Ministro de Primeira Classe, em junho de 2018, após atuar como subchefe de gabinete do Itamaraty, até assumir, em outubro de 2016, já no governo Temer, a direção do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos. Discípulo do guru de Virgínia (EUA) e polemista Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo foi indicado a Jair Bolsonaro pelo secretário de assuntos Internacionais do PSL, Filipe Martins. Não foi por outro motivo que Filipe Martins, nesta semana, usou seu twitter para defender a atuação “vitoriosa” do chanceler no caso do embarque de 2 milhões de doses do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) da AztraZeneca, que tem parceria com a Fiocruz. Elas chegaram, afinal, no início da noite de 6ª feira, 22 de janeiro.
No cronograma original do Ministério da Saúde e do Ministério das Relações Exteriores, as vacinas teriam desembarcado no Brasil, sábado retrasado (16 de janeiro). O Brasil preparou um avião totalmente adesivado (como aqueles ônibus de propaganda que circulavam pelas ruas divulgando produtos) com o anúncio da chegada da vacina da Índia. Desde a 3ª feira da semana anterior tinha sido feito, com alarde, o anúncio pelo governo brasileiro, que afretou um Boeing 330A da Azul que, saindo de São Paulo, fez escala em Recife. De lá, embarcaria 5ª feira à noite retornando no sábado, 16 de janeiro, ao Brasil. Uma gafe imperdoável, pois o enredo não fora combinado com a diplomacia da Índia.
Afinal, no mesmo sábado, 16 de janeiro - quando no imaginário do Itamaraty e do Ministério da Saúde o Brasil teria o equivalente a 2 milhões de doses da vacina da AztraZeneca -, o primeiro ministro Narendra Modi daria início à campanha nacional de vacinação do país de 1.350 milhões de habitantes. Na 4ª feira, 13 de janeiro, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores ironizou o Brasil, dizendo que estava “queimando a largada”. De fato, só na cabeça de mentes primárias seria concebível que o maior produtor de insumos farmacêuticos do mundo começaria a comercializar vacinas para o exterior antes de começar a imunizar sua imensa população contra a Covid-19. Mas o assessor Filipe Martins teve a cara de pau de atribuir no twitter, a patacoada do governo Bolsonaro (que teve de desviar o avião da Azul da rota de Bombaim, para voltar a São Paulo e dali carregar cilindros de oxigênio para Manaus, em situação desesperadora) ao “estardalhaço feito pela imprensa brasileira”. O Twitter não bloqueou a “fake news”. Pelo que sei, não foi um pool de repórteres de "O Globo", "Folha de S. Paulo", "O Estado de S. Paulo", Rede Globo e GloboNews, nem Band, que adesivou o Boieng. Conta outra que esta não cola.
Se não fosse o empenho do governador de São Paulo, João Dória, que mobilizou o Instituto Butantan para fazer parceria com a chinesa Sinovac para a obtenção dos IFAs da CoronaVac no Brasil, a vacinação iria atrasar uma semana. Mas a comemoração tripla na chegada do avião da Emirates, na noite de 6ª feira pelo trio formado pelos ministros da Saúde, Eduardo Pazuello, das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que além de deputado federal é genro de Senor Abravanel, o Silvio Santos, dono do SBT, era digno de um programa de auditório barato. A vacinação não começou agora. A vacina Covishield, da AztraZeneca, permite maior intervalo (3 meses) entre a 1ª e a 2ª dose, contra 28 dias na CoronaVac. Mas é preciso muita gestão diplomática, que o Brasil não fez, para garantir mais doses da AztraZeneca (as novas remessas viriam da China e/ou da Índia) e da CoronaVac, além da eventual aprovação da vacina russa Sputnick V. A União Europeia, que apostou na vacina da AztraZeneca, já foi informada que as entregas podem atrasar três meses.
Tancredo Neves, um político habilidoso, que costurou a retomada do poder civil na redemocratização do país, nos anos 80, mas o destino o tirou da presidência da República, tinha duas frases lapidares sobre política: 1 – “Acordo só se anuncia depois de assinado”; 2 – “Político só escreve carta depois de receber a resposta”. O Brasil de Jair Bolsonaro não tem qualquer polimento político e diplomático. Daí o chá de humildade tomado da Índia.
O Brasil, que abriu seus mercados aos Estados Unidos de Trump, sem garantir nada em troca (fiava-se no bigode de Steve Bannon, o ex-assessor, condenado por golpes, mas que Trump , que evitou participar da posse de Joe Biden, indultou antes de deixar a Casa Branca), tratou de escrever uma carta (em português, como fez também com a Índia) ao novo presidente americano procurando demonstrar o interesse brasileiro por um acordo de livre comércio. Depois que os primeiros atos de Joe Biden foram a volta dos EUA ao Acordo de Paris (Clima) e à OMS, Bolsonaro e equipe vão ter de esperar no milho, até melhorar a posição brasileira em relação à questão ambiental...
Voltando à Índia, a segunda nação mais populosa do mundo, está às vésperas de comemorar os 75 anos de independência do Império Britânico, um parto traumático, que gerou o nascimento, engendrado pela diplomacia britânica, para tentar manter sua influência regional, de dois estados – o Paquistão, de religião muçulmana, a oeste, e a Índia, onde predomina o hinduísmo, mas há uma minoria muçulmana, cujas celebrações, em março, foram o estopim na nova Covid-19 no país. A Índia caminha para os 155 mil mortos e se prontificou a atender prioritariamente os países vizinhos. Com exceção do Paquistão. Entre os vizinhos, o mais populoso, no extremo leste, é Bangladesh. Com 168 milhões, é o 7º país do mundo (supera a Rússia, com 147 milhões de habitantes), com predominância da religião muçulmana, que nasceu em 1971 numa cisão do antigo Paquistão. O Nepal, com 18 milhões, o pequenino reino do Butão, com 800 mil habitantes, Mianmar (53,7 milhões) e as ilhas Maldivas (500 mil), Seychelles (98 mil) e o Sri Lanka (antigo Ceilão, com 22 milhões) foram contemplados em 1º lugar na política de prioridade aos vizinhos.
Só depois de entregar as primeiras doses aos vizinhos - a iniciativa “Vaccine Maitri” beneficiou até agora o Butão (150.000 doses), as Maldivas (100.000 doses), Bangladesh (2 milhões de doses), Nepal (1 milhão de doses), Mianmar (1,5 milhão de doses), Maurício (100.000 doses), e Seychelles (50.000 doses) -, a Índia foi atender encomendas externas. Na madrugada de 6ª feira (no fuso horário indiano), duas aeronaves decolaram com 2 milhões de doses cada para o Brasil e o Marrocos – com os primeiros suprimentos comerciais da Covishield, a vacina AstraZeneca feita pelo Serum Institute of India. Embarques para a Arábia Saudita, África do Sul, Bangladesh e Mianmar seguirão nos próximos dias. Bangladesh assinou um acordo com o Serum Institute no ano passado para 30 milhões de doses.
O 5º país do mundo, com uma população superior a 212 milhões de habitantes (não é o Brasil, que tem 212,5 milhões, mas sim o Paquistão, que já está acima de 213 milhões de habitantes, segundo projeções da ONU) está mais distante das vacinas indianas do que o México de Deus. Tudo pelas brigas de décadas entre Índia e Paquistão pela Caxemira (cada um reivindica parte do território). Várias guerras e escaramuças já custaram 2 milhões de vidas, nos dois lados. Quando perguntaram ao primeiro ministro Narendra Modi se o Paquistão solicitara vacinas (o país tem menos de 13 mil mortos até o momento, 200 mil a menos que o Brasil), Modi desconversou. Como não há outro supridor, o Paquistão, aliado politicamente à China, foi se suprir de 500 mil doses da vacina Sinopharm (outro laboratório chinês).
O Brasil, com mais de 215 mil mortos, já superou a marca de 0,1% óbito por habitantes. Com mais de 216 mil óbitos neste sábado, nossa média é de 101,6 mortos por cada 100 mil habitantes. É um número alto, que não pára de avançar. Por isso, e pelo fim do Auxílio Emergencial, a popularidade de Bolsonaro despenca. O momento exige luto e respeito, além de mobilização total para encontrar o máximo de fornecimento de vacinas capaz de garantir um plano sustentável de imunização. Este terá de ser o 2º em volume do Ocidente, porque somos a 2ª população do Ocidente. Não é hora de comemorações semelhantes à chegada do avião que trouxe o Flamengo Campeão da Taça Libertadores, em 2019, saudado com canhões de água (desta vez, em Guarulhos-SP).