Por Coisas da Política
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COISAS DA POLÍTICA
O bote da serpente
Publicado em 24/04/2022 às 08:13
Alterado em 24/04/2022 às 08:13
Pessoas minimamente informadas já devem ter visto ou ouvido falar do filme “O Ovo da Serpente”, do genial cineasta sueco Ingmar Bergman, que trata do perigo do nazismo. David Carradine, mais conhecido por ter dado vida ao personagem da série “Kung Fu”, interpreta, numa Berlim de 1923, nos prolegômenos dos movimentos nazistas de Adolf Hitler, Abel Rosenberg, um trapezista judeu desempregado, que descobrira que seu irmão, Max, se suicidara. Logo encontra Manuela, a cunhada. Juntos sobrevivem com dificuldades à violenta recessão econômica pela qual a Alemanha passa. Sem compreender as transformações políticas em andamento, ambos aceitam trabalhar em uma clínica clandestina que realiza experiências em seres humanos.
O perigo do germe nazifascista, com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, deu origem a vários livros e estudos alertando para o risco do “Ovo da Serpente” no Brasil. Já está mais do que claro que, do ovo, já eclodiu a serpente, que está armando o bote mortal na democracia, com o indulto presidencial, fora de finalidade, ao truculento deputado federal Daniel Silveira, condenado por 10 x 1 no Supremo Tribunal Federal por atentar contra as instituições democráticas, a começar pelos integrantes do STF. O antídoto próprio contra esse ensaio de golpe mortal da truculência contra o Estado Democrático de Direito é simples: mais democracia. O brasileiro precisa se preparar para escolher claro ao votar em outubro.
Tomemos o exemplo da França, que está neste domingo não diante de uma escolha entre um novo mandato para Emmanuel Macron e a ultradireitista Marine Le Pen, mais encorpada que seu nonagenário e raivoso pai, Jean-Marie Le Pen. Trata-se da opção entre seguir os ideários democráticos que vêm desde a Revolução Francesa, com o brado “Liberté, Egalité, Fraternité” ou o retorno ao período vergonhoso da República de Vichy (1940-44), do marechal Pétain, condenado em 1945 como colaborador do regime nazista. Se não fossem a resistência de Charles De Gaulle e dos “maquis”, a história do mundo teria sido diferente. Com imagem um pouco mais refinada que a do tosco expoente da Frente Nacional, Marine ameaça conquistar o que Jean-Marie, destituído em 2015 da presidência da Frente Nacional, não conseguiu nas eleições presidenciais de 1974, 1988, 1995, 2000 e 2007: chegar ao Palácio do Eliseu. O máximo que o velho Le Pen conseguiu foi ir ao 2º turno, em 2002, quando perdeu para Jacques Chirac, reconduzido a um 2º mandato. Assim como Chirac, Macron é também um político conservador. Mas, comparado à família Le Pen, a diferença é do vinagre para um bom vinho.
O atual presidente já deu demonstrações de apreço e respeito à democracia e à negociação política, como nas gestões junto a Vladimir Putin, czar moderno da Rússia na invasão à Ucrânia. Macron compreende a responsabilidade da França pelo seu passado colonialista para com os habitantes dos antigos territórios ocupados na África, na Indochina e nas Américas e como uma das lideranças da União Europeia. Se depender dos eleitores raivosos de Le Pen, as portas da França seriam barradas a novos emigrantes e as atuais gerações que vivem nas periferias (“banlieues”) das grandes cidades francesas seriam expulsas ou cerceadas nos seus direitos mais elementares, como costumes e crenças religiosas. Como se a glória e riqueza da França histórica, que Marine Le Pen acena reimplantar, não tivesse no outro lado da moeda, a face cruel da escravidão, da exploração dos recursos naturais das antigas colônias, ou até mesmo as pilhagens de navios abarrotados de ouro e prata vindos do Brasil e da América espanhola pelos corsários a soldo da coroa francesa (os “primos” dos piratas ingleses que contribuíram para a riqueza da velha Albion).
Atentado democrático
Assim como na França, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade precisam estar vivos no Brasil, em resposta ao bote da serpente. O instrumento da “graça” presidencial está previsto na legislação brasileira. Mas a pressa da divulgação do fato - durante a “live” presidencial das quintas-feiras, antes mesmo da condenação pelo STF ter transitada em julgado (ou seja, antes de esgotados os recursos da defesa em contestação à condenação à prisão por oito anos e nove meses, além da perda do mandato e suspensão dos direitos políticos por oito anos e multa de R$ 192,5 mil junto ao próprio Supremo Tribunal Federal), tem o sentido claro da demarcação do território pelo qual Bolsonaro quer transitar suas “motociatas” na campanha eleitoral. Mais do que indicou seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), não se trata apenas de “não deixar um soldado para trás”. O senador fluminense traduziu o espírito de convocação do clã Bolsonaro à tropa bolsonarista, que vai muito além dos eleitores adeptos das ideias truculentas expressas pelo presidente Jair Bolsonaro desde os tempos da caserna (e que em alguns casos, de tão primitivas, soam como se fosse uma volta aos tempos das cavernas e das trevas democráticas).
Como deputado federal, Daniel Silveira tinha pouca representatividade. Foi o último colocado entre os 12 deputados federais eleitos pelo PSL, o então partido de Jair Bolsonaro, nas eleições de 2018. Recebeu 31.789 votos, 0,41% dos votos dos eleitores, sendo o 41º mais votado. Perdeu nas urnas para Juninho do Pneu (do DEM), que teve 45.487 votos (0,58% do total), mas sua eleição foi facilitada pela enxurrada de votos do puxador da legenda no Rio de Janeiro para a Câmara Federal, o amigo fiel de Jair Bolsonaro, Hélio Lopes, que adotou o nome de Hélio Bolsonaro na campanha e amealhou 345.234 votos (4,47% do total, superando os 342.491 - 4,44% - de Marcelo Freixo do PSol). É preciso lembrar que a eleição de Daniel Silveira foi turbinada por um gesto midiático radical e truculento divulgado nas redes sociais na véspera da eleição, quando em companhia do candidato a deputado estadual do mesmo PSL, Rodrigo Amorim, rasgou, em Petrópolis, seu reduto eleitoral, a réplica de uma placa com o nome da vereadora do Psol Marielle Franco, assassinada pela milícia carioca em 14 de março de 2018. A placa com o nome da vereadora ficava ao lado da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na Cinelândia, distante mais de 70 kms de Petrópolis. Mas a truculência rendeu votos: Amorim foi o deputado estadual mais votado para a Alerj, recebendo 140.666 votos. Curiosamente a votação final corresponde no versículo 13:18, no livro do Apocalipse, escrito por São João, à figura da Besta.
A utilização de Daniel Silveira como um chamamento às tropas bolsonaristas mais radicais é um perigoso precedente, quase uma convocação das “Sete Trombetas do Apocalipse” de que nos fala Mateus (24.31). Curiosamente, a primeira das ameaças do Apocalipse 8.7 diz textualmente que “ao sinal da primeira Trombeta acontece uma chuva de fogo e a terça parte da erva verde é queimada”. Se o que Bolsonaro e seu ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, promoveram na Amazônia, com a abertura de “cercas e porteiras” (esvaziamento do Ibama, desmobilização da Polícia Federal e das Forças Armadas no combate aos crimes ambientais, associados ao contrabando, evasão de divisas, narcotráfico e tráfico de armas nas fronteiras com a América do Sul) para a “passagem das boiadas” de desmatadores, grileiros, garimpeiros e invasores de terras indígenas fizeram não é um mau sinal, será que convém comprovar as demais desgraças para ser temente a Deus? Ou mais concretamente, temer pelas liberdades democráticas? O perdão ao ex-PM, que quando vestia farda foi punido por sucessivos atos de truculência e insubordinação, cria uma afinidade eletiva com a tropa que Bolsonaro deseja arregimentar para marchar unida na campanha eleitoral.
O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal e árbitro em disputas entre o Executivo e o Legislativo (cabe ao presidente do STF presidir a sessão do Senado Federal que julgará propostas de “impeachments” do presidente da República, do vice, ou de ministros do STF) dá a última palavra em relação ao cumprimento dos preceitos constitucionais. Foi assim nos “impeachments” de Fernando Collor, que renunciou mal iniciado o julgamento, mas não se livrou da perda dos direitos políticos, e de Dilma Roussef, que teve parte dos direitos políticos preservados por um acordão entre o então presidente do Senado, Renan Calheiros, e ministros do STF, em 2016.
Usar o caso Silveira para mirar no STF e mais especificamente no relator do processo contra Daniel Silveira, o ministro Alexandre de Moraes, que, por coincidência, é o relator dos inquéritos sobre as “fake news” e o uso de robôs nas eleições, das quais será o árbitro principal em setembro, quando assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, foi de caso pensado, para transmitir um recado explícito à militância radical dos apoiadores. O uso do subterfúgio de que Daniel Silveira está sendo punido por emitir opinião é uma “fake news”. A imunidade parlamentar sobre a liberdade de expressão se aplica a atos na tribuna ou no ambiente da Câmara. Se o deputado afronta as instituições na rua ou nas redes sociais, está saindo das quatro linhas do exercício do direito parlamentar. Por ter cometido crimes, pelos quais está sendo julgada no TJ-RJ, a deputada Flordelis, a 5ª mais votada para a Câmara Federal em 2018, pelo PSD, teve o mandato cassado pela Câmara, depois de uma demora interminável. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), invocou para a própria Câmara o poder de decidir sobre a cassação ou não do mandato de Daniel Silveira. A julgar pelo espírito corporativista e de compadrio da Câmara e do Senado, onde vigora o pleno domínio dos modos e costumes do Centrão (a miríade política formada pelos parlamentares do PL, de Valdemar Costa Neto, do PP, de Ciro Nogueira, do União Brasil, resultado da fusão do PSL com o DEM, e do Republicanos, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo), teríamos a mesma condescendência pela qual o Senado, até hoje, não condenou com a perda de mandato, o senador Chico Rodrigues (União Brasil-RR), flagrado pela Polícia Federal com um chumaço de mais de R$ 33 mil em notas encravado nas nádegas, em outubro de 2020, durante diligência em sua residência.
Na história da República, excluindo-se as arbitrariedades dos atos discricionários do período militar, que cassava a oposição com os atos institucionais (AI-1, AI-2, AI-5 e o “pacote de abril, no governo Geisel, quando o Congresso foi fechado em 1977, no “Pacote de Abril”, e dele retirados deputados e senadores contrários ao governo, ameaçado de perder maioria no Colégio Eleitoral, cuja maioria foi garantida com a esdrúxula figura do “senador biônico”, o 3º senador de cada estado, eleito por via indireta, mantido na Constituinte, porém, sob o escrutínio do eleitor), poucos políticos perderam o mandato, por decisão dos próprios pares. O primeiro a ser cassado, em maio de 1949, foi o deputado federal Barreto Pinto. Eleito pelo antigo Estado do Rio de Janeiro, Barreto Pinto foi fotografado pela revista “O Cruzeiro”, de Assis Chateaubriand, enquanto se preparava para ir a uma festa de gala. Estava de fraque e cartola, porém, de cuecas, deixando para vestir as calças por último. Barreto Pinto tentou atribuir o “atentado ao pudor” a um estratagema do fotógrafo. Este alegou que só seria publicada a foto em “plano americano”, da cintura para cima. A edição da revista expôs o senador de corpo inteiro: fraque, cartola e cuecas tipo “samba canção”, como se usava à época. Hoje, nem batom nem dólares ou reais nas cuecas são motivos para corar os colegas.
Democracia e balas perdidas
Voltando aos ideais democráticos, é impossível dissociar o gesto do presidente Jair Bolsonaro das pregações que o ex-presidente Donald Trump fez nos Estados Unidos ao longo do ano eleitoral de 2020. Até a eclosão da pandemia da Covid-19, a reeleição de Donald Trump parecia tranquila. Mas o candidato dos Republicanos desdenhou do novo coronavírus, que identificou inicialmente como “uma gripezinha”, que “não poderia ameaçar o poderio da América”. A falta de empatia com as mortes em números brutais (chegaram a 990 mil agora em abril) levou à mobilização pelos Democratas de influentes setores da sociedade para o comparecimento às urnas (lá o voto não é obrigatório, como no Brasil). Quando percebeu que a mobilização dos hispânicos (maltratados pela construção do muro na fronteira com o México) e dos negros (o episódio da morte por asfixia de George Floyd carreou os votos dos negros para Joe Biden) iria se traduzir em uma avalancha de votos correio (diante das recomendações médicas para se evitar aglomerações que pudessem resultar em riscos de propagação da Covid-19, Trump iniciou uma narrativa de que o voto pelo correio não seria válido e que, portanto, qualquer resultado diferente de sua vitória (expressa majoritariamente pelo voto presencial dos republicanos nas urnas) seria “uma fraude”. Perdeu por mais de três milhões de votos no voto popular e no Colégio Eleitoral. Esperneou até o último momento contra a proclamação dos resultados em estados onde acreditava que iria vencer, mas foi derrotado pelo engajamento popular. A Suprema Corte dos Estados Unidos avalizou toda a votação. Mas ainda assim, na maior das infâmias, insuflou pelas redes sociais a seus apoiadores, que habitualmente andam armados - em um país onde a tradição do uso do rifle (para garantir a conquista das terras que os brancos e colonizadores tomaram das diversas tribos nativas dos Estados Unidos, durante a marcha para o Oeste) produziu o costume do culto às armas por parte da população, que se traduz em matança periódicas de cidadãos que investem contra pessoas inocentes escolhidas a esmo -, marchassem contra o Capitólio, sede do Congresso americana, onde, em 6 de janeiro de 2021, o vice-presidente Mike Pence presidia a cerimônia de diplomação do presidente eleito Joe Biden e da vice Kamala Harris. A democracia americana sobreviveu, com mortes e ferimentos graves.
A democracia brasileira segue sob ameaça. A alegação de que “a sociedade encontra-se em legítima comoção em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião”, soa tão esdrúxula e extemporânea quanto as alegações de Trump, que depois se escusou de assumir a responsabilidade por ter insuflado seus seguidores a pegar em armas e impedir a proclamação da eleição de Biden na marra. Salvo as manifestações de um outro bolsonarista mais radical pelas redes sociais, não se viu protestos, na tribuna da Câmara ou do Senado. As sucessivas medidas para ampliar o uso de armas pela sociedade, com o subterfúgio de que a ampliação do porte de arma está sendo concedido a caçadores, atiradores e colecionadores de armas (CACc), cultivados com as sucessivas presenças do próprio presidente da República a estandes de tiro, e os afagos a policiais militares das brigadas estaduais, para os quais chegou até insuflar motins em tempos recentes. Quando era militar ele foi reformado no Exército por ter distribuído um desenho que continha instruções de como colocar uma bomba em dependências militares ou de infraestrutura pública. O julgamento do Superior Tribunal Militar (STM) deu empate, mas com a recomendação da passagem para a reserva e desligamento das forças armadas. O ex-presidente general Ernesto Geisel, cioso da disciplina militar, a ponto de demitir generais da linha dura que se insurgiram contra o processo de “abertura, lenta, gradual e segura”, como o comandante do II Exército, general Dilermando Reis (em 1975), após os “suicídios” do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, nas instalações do DOI-Codi, e do próprio ministro do Exército, Sylvio Frota, em outubro de 1977, mesmo depois de ter fechado o Congresso e feito o “Pacote de Abril”. Fazia parte da trupe de oficiais que serviam com Sylvio Frota, o hoje chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, um dos militares de maior ascendência sobre Jair Bolsonaro.
Será preciso novo desenho detalhado, ou mesmo tosco, para servir de alerta de que, caso Bolsonaro seja derrotado em outubro (como indicam até aqui as pesquisas eleitorais, apesar do enorme esforço de uso de verbas e projetos oficiais para aliciar o eleitor) sua turma mais exaltada, em desobediência civil (liderada pelos CACs) e militar com apoio de integrantes das forças armadas e das polícias, sem contar a infiltração das milícias, poderá tentar invadir os prédios do Tribunal Superior Eleitoral, do Supremo Tribunal Eleitoral e do Congresso (já com uma nova composição já desenhada mais à centro-esquerda)? Fariam isso seguros, de que forma imediata, ainda em outubro ou novembro, ou mais precisamente em dezembro seriam perdoados por um indulto presidencial, quando as balas perdidas atingissem a democracia?