A família vexatória
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Em dois meses de governo Lula, os casos que afloram após a retirada do sigilo de 100 anos de algumas ações irregulares acobertadas na gestão Bolsonaro são de fazer corar o cidadão/contribuinte. Por muito menos, o cidadão tem de dar explicações à polícia, pode ser alvo de inquérito e processos e ainda pode ter sua vida encrencada pela Receita Federal quando comete algum erro na declaração anual do Imposto de Renda, abate mais despesas que devia com médicos ou omite ganho de capital no mercado financeiro ou na venda de um terreno. Não bastassem as sucessivas denúncias de mau uso dos instrumentos do Estado brasileiro para a proteção da família presidencial e seus amigos, com coerção sobre os procuradores e promotores que investigavam os casos da “rachadinha” dos salários dos nomeados no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, na Alerj, como a demissão de agentes da Polícia Federal que não aceitaram fazer corpo mole e cumpriam o dever funcional de atuar em defesa do cidadão/contribuinte/eleitor, que banca com seus impostos a máquina do Estado, ou o afastamento dos fiscais da Receita Federal que não aceitaram esquecer o caso ou, pior, fizeram “arapongagem” para constranger e chantagear juízes e promotores do MP-RJ, que investigavam o caso, o último escândalo da semana envolve um valioso presente do bilionário reino da Arábia Saudita à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
O que está em jogo não é o valor do mimo – por sinal, bastante elevado -, mas a noção totalmente equivocada pela qual os Bolsonaro (cujo chefe do clã exercia o governo de turno, por ter sido eleito em 2018) se julgavam “donos” do país e das Instituições do Estado, que não são do governo. Seja a Polícia Federal, a Abin, a Receita Federal, incluindo as alfândegas, o Itamaraty e até as forças Armadas, em especial o “meu”, o seu, o nosso Exército.
A história seria simples se a família que ocupou o comando da nação não tivesse confundido os seus interesses (e do seu governo) com os do Estado brasileiro. A transcrição da vexaminosa reunião de 22 de abril de 2020 mostrou como a coisa pública era mal gerida no governo Bolsonaro, sem fronteira entre o público e o privado, entre o governo e o Estado.
A Arábia Saudita é um rico Estado teocrático autoritário, grande produtor de petróleo e gás governado pela família Abd Saud, no poder desde 1932. O país sedia e protege os locais mais sagrados do Islã, as cidades de Meca e Medina. Lá a vontade do Rei e dos príncipes está acima de tudo e as mulheres não têm direitos iguais aos homens, devendo ser subalternas. Como o Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, no trono desde 2015, está adoentado, o poder é, de fato, exercido pelo Príncipe herdeiro Mohammad bin Salman. Foi Salman, segundo investigações dos Estados Unidos, que esteve por trás do sequestro, seguido de execução, seguida de esquartejamento, do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que desapareceu após entrar no consulado saudita em Istambul, na Turquia, para tratar de documentação de seu casamento. Em visita ao país, em 2019, no 1º ano de governo, Jair Bolsonaro se identificou imediatamente com o Príncipe Salman e disse que via “brasileiros e sauditas como irmãos”.
Em nova viagem em junho de 2021, a comitiva brasileira, chefiada pelo então ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, que levava um assessor, o militar Marcos André dos Santos Soeiro, tinha a presença ilustre da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Na ocasião, como é praxe no reino saudita, os ilustres visitantes, representantes de uma nação estrangeira amiga, foram presenteados com ricas joias e relógios. A primeira-dama recebeu um colar, anel e brincos de diamantes e um relógio de ouro, com certificado de autenticidade da marca Chopard. Um pacote avaliado em R$ 16,5 milhões. Como era um presente de Estado para Estado, se fossem declaradas na Alfândega, no desembarque no Brasil, as joias iriam integrar o acervo da Presidência da República Federativa do Brasil e não pagariam imposto algum. Mas só poderiam ser usados pela primeira-dama em atos oficiais e enquanto o marido estivesse no poder.
A 'rachadinha' das joias
A prática das “rachadinhas”, que vinha desde o gabinete do então deputado Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, de apropriação parcial ou integral de dinheiro público pago a assessores nomeados com esse compromisso, tirou da família a distinção entre o que é público e o que é privado. Para tentar ludibriar a fiscalização da Alfândega no desembarque, a muamba valiosa foi acondicionada na valise do militar Marcos André, assessor do almirante Bento Albuquerque, ministro das Minas e Energia. Quem suspeitaria de um militar?
Para azar da comitiva, quando foi a vez da passagem das malas do militar com a valise, a aduana do Aeroporto de Guarulhos acendeu a luz vermelha naquela manhã de 26 de junho. No exame da valise no raio-X, algo foi detectado e, na revista da bagagem, foram encontrados o conjunto de joias e o relógio de ouro. Como a lei determina, os objetos foram apreendidos. Para quem volta do exterior com mercadorias acima de R$ 1 mil, o passageiro precisa pagar imposto de importação equivalente a 50% do valor do produto. Quando o passageiro omite o item - como foi o caso do assessor do governo - tem que pagar ainda uma multa adicional de 25% do valor. Ou seja, uma multa total de 75%. Para reaver as joias, que ficaram na Receita Federal, responsável pelas Alfândegas, Bolsonaro teria que pagar cerca de R$ 12,3 milhões. E o flagrante oficial impediria a incorporação dos brindes aos bens pessoais da primeira-dama. Seriam confiados à guarda do acervo da Presidência da República (por esta falta de noção/distinção, Lula se queixou do sumiço de bens que ganhou nos dois primeiros governos (2003 a 2010).
Ao saber do acontecido com o auxiliar, o almirante Bento Albuquerque retornou à área da alfândega e tentou, ele próprio, retirar os itens, informando que se trataria de um presente pessoal para Michelle. Não houve progresso na “carteirada”. O clã Bolsonaro, que tratava a PF, o Exército e a Abin como “coisa nossa”, fez um total de quatro tentativas de driblar os rigores da Lei. Em 3 de novembro de 2021, coube ao Itamaraty exercer pressão sobre a Receita Federal na busca pelas joias. O Ministério das Relações Exteriores pediu ao órgão fiscal que tomasse as "providências necessárias para liberação dos bens retidos", mas a Receita retrucou que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos. Nessas situações, só é possível resgatar o item apreendido pagando um tributo equivalente a 50% do valor estimado do material. Também é cobrada multa de 25% sobre o valor cheio, num total de quase R$ 12,3 milhões.
Mas o presidente Bolsonaro tentou até o último dia em que estava no poder no Brasil (28 de dezembro de 2022) liberar os bens na Alfândega de Guarulhos. Nos últimos dois meses, houve mais tentativas de Bolsonaro de reaver as pedras preciosas, acionando os ministérios da Economia, Minas e Energia e Relações Exteriores, além de militares. Na última cartada, o chefe da ajudância de ordens do Palácio do Planalto, o coronel Mauro Cid, pegou um avião da FAB e desembarcou em Guarulhos para retirar as joias. Em vão. A despeito dos esperneios de 8 de janeiro, Bolsonaro, que já tomava café frio no Alvorada, sentiu que o poder da sua caneta BIC se esvaíra desde a eleição de Lula em 30 de outubro. A Receita foi inflexível como poder do Estado pelo qual zela.
A patética reação de Michelle
Após o assunto vir à tona esta semana, em reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”, que conseguiu tirar o sigilo da questão, a ex-primeira-dama deu uma declaração patética que só confirma a falta de noção republicana como a família governou o Estado brasileiro por quatro intermináveis anos.
Com os habituais erros de português, Michelle assim se expressou sábado, no Instagram: “Quer dizer que eu tenho tudo isso e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória.” Totalmente sem noção e pudor.
Voltando à política
Essa falta de distinção entre o público e o privado parece ser uma febre de quem alcança o poder. Vejam o caso do ministro das Comunicações, o deputado eleito e licenciado do União Brasil (MA), Juscelino Filho. Ele foi nomeado para o cargo para ver se o governo conseguia o apoio na Câmara do rachado União (fusão do PSL, que elegeu Bolsonaro, em 2018, com o DEM).
Criador de cavalos e habitual realizador de leilões, ele aproveitou o aparato do cargo, com avião da FAB quando em missão oficial, para encaixar uma agenda em São Paulo, numa manhã de 6ª feira. Com a tarde e o fim de semana livres, foi ao interior de São Paulo tratar do que mais gosta: dos seus negócios de compra e venda de cavalos marchadores em leilões.
Apanhado com a boca na botija, Juscelino nem corou. Disse apenas que irá devolver as diárias que recebeu. É pouco, tendo em vista os lucros privados que teria amealhado com uso dos próprios públicos. Por sinal, o valor do plantel, estimado em mais de R$ 2 milhões, não foi declarado ao Imposto de Renda, nem na declaração de bens à Justiça Eleitoral.
No Congresso, onde os líderes dos partidos são useiros e vezeiros desviadores de verbas públicas para seu próprio proveito (ou em operações cruzadas com parceiros, como ficou claro na malversação do bilionário Orçamento Secreto), quase ninguém torceu o nariz para Juscelino, que está longe de ser JK.
Mas, por questão de coerência, o presidente Lula não pode passar pano por cima dos cavalos de Juscelino, providência que segue à raspagem e antes da colocação dos baixeiros.
Essa falta de escrúpulo entre o pessoal e o privado é que desmoralizou a política e facilitou o surgimento de mitos hipócritas.