A hora do pós-guerra

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Um dos problemas herdados das guerras é o pós-guerra, que vai traçando sua capacidade de traçar imensas dificuldades, sem contar milhares de vidas ceifadas e ruínas amontoadas, como hoje se vê e se sente na paisagem sinistra da Faixa de Gaza. O pós é o nosso próximo desafio. Chegando o depois, quando armas e mísseis retornam aos arsenais de onde não deviam ter saído, sem contar o impossível esquecimento dos mortos, o quadro não se torna menos desanimador, por causa dos desdobramentos políticos internacionais decorrentes. Quanto a estes, as previsões ainda não permitem ir muito longe, mas virão, com toda certeza. E o Brasil não estará ausente.

Estivemos na breve presidência do Conselho da Segurança das Nações Unidas, clamando por diálogo e parcial suspensão das hostilidades, uma esperança quase universal que naquele momento o Estado Judeu tinha na conta de negação do seu direito de reagir e vingar as atrocidades do Hamas em 7 de outubro.

Nossa cota no futuro cenário inevitável começa com o reestudo das relações com Israel, que, se já não eram excelentes, saem agora com sinais de desgaste. Tomada em conta a evidente simpatia do governo pela causa palestina, sem excluir formalmente o braço terrorista do Hamas, evidenciou-se a morosidade das autoridades de Tel Aviv para liberar três dezenas de cidadãos brasileiros, ávidos por deixar o teatro da guerra, porque nada tinham a ver com desavenças que não são suas. Sob evasivas e adiamentos, ficamos tontos em meio a inexplicável escala de prioridades na fuga, relegando os nossos, como se a sobrevivência não fosse direito dos nacionais daqui. Nesse clima, a diplomacia insinuou o crime genocida, que ficou debitado aos judeus.

Se não faltassem outras razões de estremecimento, o embaixador de Israel enfiou colher de pau numa sopa já indigesta, encontrando-se com o ex-presidente Bolsonaro e com líderes da oposição para conversar sobre a guerra. Sendo ou não descuido, o episódio ajudou a arder as relações, o que haveria de coincidir com a suspeita de que a inteligência do exército judeu esteve interferindo no caso de terroristas desembarcados para agredir sinagogas, parte de um velho fenômeno agora ressurgente, o antissemitismo, lamentavelmente aflorado em outras partes do mundo.

Por acréscimo, não convém esquecer que a posição brasileira nessa guerra conta com o visível descontentamento dos Estados Unidos, fator a mais a examinar, porque temos interesses e negócios com Washington, sendo ou não do agrado de Brasília. Portanto, várias questões a serem tratadas.

Hoje, como sempre, parece plenamente justificável a preocupação com os pós-guerras, principalmente por causa das influências, maiores ou menores, que exercem sobre a marcha da civilização. O professor Samuel Hurting cuidou bem disso, desde a Paz de Westphalia até a Guerra Fria. Nestes nossos dias, Gaza não consegue esconder que veio contribuir para aumentar separações, contrastes geopolíticos, interesses divergentes, as diferentes de fé entre islâmicos, cristãos e judeus; contantes lutas e ódios entre Oriente e Ocidente. Um choque de civilizações que a gente não sabe como vai terminar.

Rota da intolerância

O espírito de intolerância, distribuído pelos mais diversos segmentos, não apenas o político, continua sendo o entulho de uma campanha presidencial que, passado um ano, mantém-se quente e próspera sob vários aspectos. Não pode ser outra a conclusão, quando o revanchismo partidário-ideológico vai avançando sobre atividades e costumes, ao ponto de manifestações artísticas ganharem pública condenação, sem julgamento de maiores ou menores talentos, mas só pelo fato de o intérprete ter sido simpático a determinado candidato a presidente, o vitorioso ou o derrotado. Exemplos vão além, quando se vê nas redes sociais a condenação de certa marca de chocolate, porque sua campanha promocional foi veiculada por ator ou cantor que tem simpatias políticas contestadas. Certo dentifrício passou a nada valer, porque aparece nas propagandas recomendado por alguém que é julgado não politicamente correto.

Nas últimas semanas, tornaram-se conhecidos casos em que cantores tiveram de cancelar seus shows, depois de a venda de ingressos ser ideologicamente boicotada. Não porque é indesejada a arte que pretendia subir ao palco, mas por causa da intolerância em relação aos que pensam, falam ou votam diferentemente.

Numa fase em que se banalizou no Brasil a pecha de nazista, estamos agora diante de casos que se adéquam perfeitamente às cartilhas do Reich, onde o pensar diferente era motivo de perseguição e banimento. A ordem é não tolerar os diferentes.

É preciso parar com isso. É preciso deixar de pensar que essas agressões são fatos desimportantes, mero delírio de radicais desocupados. A intolerância em relação a quem ousa pensar de outro modo é uma séria agressão aos direitos das pessoas.