COISAS DA POLÍTICA

País em fogo e Congresso dança em volta da fogueira

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Publicado em 23/06/2024 às 08:12

Alterado em 23/06/2024 às 08:12

Como atriz, Nyedja Cristina Gennari Lima Rodrigues é uma ótima funcionária patriota Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

O Brasil foi tomado esta semana por dois incêndios assustadores. No Pantanal mato-grossense, a cidade de Corumbá (MS) foi cercada, mais uma vez, pelas queimadas que estão virando uma rotina preocupante e destruindo o patrimônio dos fazendeiros há muito instalados na região. Se alguém tinha dúvida da influência climática e da correlação entre os vários biomas do Brasil, as ações de derrubada de florestas na Amazônia, seguidas da queima das madeiras não aproveitadas pelos madeireiros, estão afetando o clima do Pantanal. Mas o grave é que entre a Amazônia e o Pantanal está o estado de Mato Grosso, há três décadas o maior celeiro do país. Graças às pesquisas da Embrapa para desenvolver sementes de grãos adaptados ao cerrado, o Centro-Oeste atraiu milhares de fazendeiros que trocaram minifúndios ou fazendas de médio porte no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais, pela exploração, nem sempre cuidadosa, do cerrado, que foi sumindo. A evaporação das águas dos rios da Amazônia (que deram sinal de alarme em 2023, quando as geleiras dos Andes não se formaram e as calhas do Amazonas e seus afluentes secaram) forma as nuvens, também chamadas de “rios voadores”, que vão desaguar sobre as lavouras do Centro-Oeste. Quando as nuvens não se formam, a seca castiga a produção de MT, MS e GO e falta a salvadora água das chuvas para apagar os incêndios no Pantanal.

É uma situação gravíssima. Mas veja se os deputados e senadores demonstraram preocupação na Câmara e no Senado... Os parlamentares, que este ano cabularam em várias semanas os trabalhos legislativos, depois que se assenhoraram de uma grande bocada do Orçamento Secreto, só querem saber de si. Pouco se importam em criar despesas ou subsídios a descoberto que arrombam o orçamento público. Mas jogam a culpa no governo. E qualquer feriado é pretexto para enforcar a semana inteira; e este ano, de eleições municipais, a alegação é de que precisam se fazer presentes nas bases de seus estados para acordos políticos com as lideranças locais que disputam as prefeituras e as câmaras municipais. Como o cidadão/eleitor/contribuinte mora no município (estado e União são entes federativos da República), aceita-se como normal o descaso para com os assuntos que mais preocupam o país.

Veja a pantomima macabra encenada esta semana numa das comissões do Senado pelo senador Eduardo Girão (CE). Pré-candidato à prefeitura de Fortaleza, a quarta capital mais populosa do país, superando Salvador, segundo os dados do Censo 2022 do IBGE; o senador, que se elegeu em 2018 pelo PROS, passou para as fileiras do PODE, quando foi um dos principais apoiadores no negacionismo do presidente Jair Bolsonaro na pandemia da Covid, está filiado ao Partido Novo desde 2023. Com ajuda de uma obscura atriz de Brasília e o respaldo do presidente do Conselho Federal de Medicina, o obstetra José Hiran da Silva Gallo, o senador simulou, com bonecos, um aborto no plenário do Senado. A reação da sociedade e da imprensa a tão infame baixaria política ampliou as fileiras dos que querem derrubar o projeto do senador que pretende dar uma pena maior à gestante que interromper o fruto de um estupro (até 20 anos) do que a pena de 10 anos para o estuprador.

Mas, enquanto senadores e deputados apenas faziam figuração em Brasília, esperando embarcar logo para a semana de grande agitação política nos arraiais do Nordeste e do interior do país, onde as festas de São João são palco de grandes reuniões políticas em volta das fogueiras para aquecer e fortalecer os cacifes políticos de deputados e senadores em suas bases, um outro incêndio mais grave atingiu o país no dia seguinte.

Os estragos do 'quarto poder'
Em 19 de junho, o Comitê de Política Monetária do Banco Central interrompeu o ciclo de baixa da taxa Selic em 10,50% ao ano, um ponto e meio acima do que era previsto no começo do ano. Isso vai travar a economia, o emprego e comprometer a capacidade do governo para dar continuidade a programas sociais para corrigir a imensa concentração de renda no país. Não se ouviram vozes de críticas ao excesso de cautela do Banco Central. Ao contrário, tentou-se levar adiante o projeto do senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) de complementar a autonomia do Banco Central em relação ao Poder Executivo, à proposta de autonomia financeira para a Autoridade Monetária.

Embora tenha passado a funcionar como um “quarto poder”, a partir da promulgação da Lei 179, de fevereiro de 2021, o Banco Central do Brasil segue batendo às portas do Tesouro Nacional para cobrir seus rombos. Em janeiro deste ano, o Tesouro teve de socorrer o BC pelo rombo de R$ 36,5 bilhões nas contas de 2022. E o ano de 2023 terminou com o Banco Central tendo prejuízo de R$ 114,2 bilhões. Com o uso de reservas, o BC reduziu o rombo a R$ 111,2 bilhões, a ser espetado em 2025 no Tesouro Nacional, que já paga juros estratosféricos aos banqueiros e investidores pela decisão do Copom. Uma das alegações do Banco Central é de que poderia bancar suas contas (e ter mais autonomia para negociar salários, se apropriando dos ganhos de senhoriagem a ser estendida às operações dos novos meios de pagamentos que recorrem ao PIX, criado pelo BC. Trata-se de uma aposta no escuro cujo único resultado será a criação da casta dos funcionários do Banco Central, imunes e insensíveis às reais demandas da sociedade.

Será por isso que parte do Senado apoia a ideia?

Lula muda visão sobre tamanho da família
No momento em que a ala conservadora-evangélica do Congresso tenta deixar o governo Lula em sinuca de bico com a extemporânea proposta de criminalização do aborto após 22 semanas (a Constituição autoriza o aborto legal, até 12 semanas em caso de estupro, anencefalia do feto e com risco de vida da gestante), o presidente da República manifestou uma nova visão sobre o tamanho das famílias que pode envolver o planejamento familiar e ter impactos futuros na demografia do país e nas políticas públicas para mitigar a má distribuição de renda brasileira.

Em cerimônia de entrega de apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida, quinta-feira, em Fortaleza, o presidente Lula expressou uma visão que pode mudar a ótica assistencialista que norteou a criação do Bolsa Família, em 2003, quando o seu primeiro governo enfeixou no BF programas assistenciais que vinham do governo Sarney, como o Vale Gás, e foram ampliados no governo FHC, com o “Comunidade Solidária”, de D. Ruth Cardoso, nos quais havia condicionalidade da ampliação da assistência à família ao número de filhos, desde que esses estivessem na escola.

Ao reeditar, em 2023, o Bolsa Família, que Bolsonaro tinha rebatizado e ampliado como Auxílio Emergencial na pandemia da Covid. e repaginado eleitoralmente em meados de 2022, como Auxílio Brasil, Lula deu mais ênfase às mães cujos filhos, além dos estudos, tivessem carteira de vacinação em dia. Mas o espírito era o mesmo: através do ensino, uma nova geração da família teria a possibilidade de melhorar de vida e ascender na escala social.

Pois esta semana, na cerimônia do MCMV, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aconselhou uma beneficiária do programa a parar de ter filhos. A mulher de 25 anos tem três crianças. Segundo Lula, a “primeira coisa” que ela tem que fazer é parar de ter filhos e voltar a estudar). “Veja aquela menina que vem aqui com três crianças. Aquela moça tem 25 anos de idade e ela tem três filhos. (o padrão básico do MCMV é um imóvel com sala, dois quartos, banheiro e cozinha). Falei para ela: ‘Minha filha, a primeira coisa que você tem que fazer é parar de ter filho, porque você já tem três’”, disse Lula, que emendou: “Falei para ela que ela tem que estudar, porque agora tem três filhos pra cuidar”. “Ter três filhos, não é mole”, insistiu o presidente. “Ela tem que voltar a estudar, aprender uma boa profissão para poder cuidar direitinho dos filhos dela”.

Essa mudança da visão assistencialista do governo, quando o presidente Lula reitera o apelo para que as mulheres limitem o número de filhos, pode ter importantes repercussões na demografia e no desenho das futuras políticas públicas. [Vale lembrar que a demografia, tema meio que ignorado no Brasil, alarma todos os países europeus e o Japão pelo encolhimento da população e o aumento da expectativa de vida (o impacto na Previdência social é uma bomba de retardo, haverá menos arrecadação para bancar a longevidade dos já aposentados), e pelo temor da política do “filho único”, já revogada há alguns anos, encolher à metade a população da China em 2050]. Em maio, Lula já havia citado numa solenidade do MCMV a história de uma beneficiária do programa: “Quando é que vai fechar a porteira, companheira? Não pode mais ter filho. Ela já tem 5 filhos, ela tem 27 anos de idade”.

Se a população mais pobre considerar que pode ter filhos à vontade, pois será amparada pelo Bolsa Família ou pelo MCMV, os orçamentos desses dois programas, que marcam mais a transferência de renda no país, não vão parar de crescer, esgarçando os gastos públicos.

Juros do BC superam gastos sociais
Mas vejam o dilema do governo para gerir os gastos sociais que visam reequilibrar, num mínimo, uma das piores concentrações de renda no mundo. A soma do orçamento do Bolsa Família este ano, que beneficiaria cerca de 21 milhões de pessoas, está estimada em R$ 169,5 bilhões. O BF garante R$ 1.200 por família e mais R$ 150 por filho que estiver estudando e com carteira de vacinação. Na família citada por Lula, seriam R$ 1.650. No MCMV, custeado principalmente com os recursos do FGTS dos trabalhadores, o governo banca o subsídio que ameniza os juros na prestação dos imóveis. A previsão de 2024 é de um gasto de quase R$ 14 bilhões. A ideia do Congresso de elevar a remuneração do FGTS (hoje de 3% ao ano mais a correção monetária) pode inviabilizar o MCMV e exigir bem mais subsídios do Tesouro (que somos nós, pois o dinheiro do governo vem da arrecadação dos impostos que pagamos, sobretudo como consumidores).

De qualquer forma, essa transferência de renda em prol dos pobres somaria, no máximo, R$ 184 bilhões. Mas vejam quanto a mudança de planos do Banco Central em relação à redução da Taxa Selic, o piso do Sistema Financeiro Nacional, provocado pela mudança do Federal Reserve de reduzir apenas 0,25% e não 0,75% a taxa de juros nos Estados Unidos, que atraiu recursos para o dólar e desestabilizou moedas e mercados em todo o mundo) vai elevar os gastos do Tesouro Nacional.

Segundo o Banco Central, com base na dívida pública líquida do setor público de abril, que era de R$ 6.787 bilhões, cada um ponto de aumento na Selic implica gastos extras de R$ 50,1 bilhões ao Tesouro Nacional no giro da dívida ao longo de 12 meses. As previsões iniciais de 2024 eram de que a Selic fecharia o ano em 9,00%. O Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) encerrou esta quarta-feira o ciclo de baixas iniciado em 2 de agosto de 2023, quando a Selic completava 12 meses em 13,75%, com a Selic em 10,50% ao ano. Esse aumento de 1,50 ponto percentual vai custar R$ 76,1 bilhões em 12 meses, que o Tesouro vai transferir à camada mais rica da sociedade: os banqueiros e aplicadores financeiros. O BF e o MCMV vida vão exigir R$ 184 bilhões.

Para dezembro de 2025, as projeções em janeiro deste ano eram de uma Selic em 8,50% e agora, depois da guinada do Copom, há duas correntes de apostas no mercado: o Bradesco prevê uma taxa de 9,50%, o que implicaria mais R$ 60 bilhões em juros, que são capitalizados; mas outra corrente, liderada pelo Itaú, aposta que os juros fiquem estacionados em 10,50%, ou seja, dois pontos acima dos 8,50% esperados no começo deste ano.

Na melhor das hipóteses, a guinada dos juros vai custar, em dois anos, R$ 136 bilhões que o Tesouro Nacional vai transferir aos mais ricos do país; na pior das hipóteses, os gastos com juros beirariam os R$ 200 bilhões em dois anos. Ou seja, o governo vai sofrer duplamente para bancar os gastos sociais, porque a manutenção dos juros altos freia o consumo e o aumento do emprego, o que afeta a arrecadação de impostos e das contribuições sociais (INSS). E os mais ricos vão continuar “numa boa” e criticando o governo Lula.

Pergunta da 'The Economist' serve a Bolsonaro
“Aqui está um experimento mental. Tente tirar a política e a corrida presidencial da sua mente e dê a Donald Trump o benefício da dúvida sobre o infame ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Aceite que ele acreditava que a eleição foi roubada e que ele estava falando sério quando contou à multidão naquele dia para marchar da Casa Branca ao Capitólio “de forma pacífica e patriótica”. Aceite que ele acreditava que nenhum de seus apoiadores portava armas ou pretendia qualquer tipo de violência. Aceite que desde então ele concluiu, como afirmou, que Nancy Pelosi, então presidente da Câmara, de alguma forma “causou” a violência, que a polícia “introduziu” a multidão, que eles eram “uma multidão amorosa” na verdade, “patriotas” que desde então se tornaram não apenas “vítimas”, mas até mesmo “reféns” de um sistema de justiça armado”.
“Então pergunte-se o seguinte: depois de abraçar todas essas suposições e afirmações, por que celebraria os manifestantes como “guerreiros”, como fez Trump durante um comício no início deste mês?”, indaga a prestigiosa e conservadora revista britânica “The Economist”.
Vamos pensar em Brasil, no 8 de janeiro de 2023. Bolsonaro estava longe, refugiado em Orlando (Florida). Embora estivesse num hospital tratando das sequelas da erisipela (efeitos colaterais da derrota de 30 de outubro), por que fez a postagem “sem querer”, (que depois apagou) incentivando o quebra-quebra das sedes dos Três Poderes, em Brasília, pela horda bolsonarista que há dois meses acampava diante de quartéis e marchou à capital federal na semana seguinte à posse de Lula, em 1º de janeiro, apostando que a arruaça levaria à convocação da Garantia da Lei e da Ordem (Glo), que seria o atalho para a tomada do poder pelas forças armadas e a sua volta à Presidência?

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