COISAS DA POLÍTICA

De Collor a Lula: o gênero fez diferença

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Publicado em 08/09/2024 às 06:02

Alterado em 08/09/2024 às 08:27

Silvio Almeida Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Desde a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808, passando pelo retorno de D. João VI a Portugal, em 1821, no governo provisório do filho Pedro, que proclama a Independência, em 7 de setembro de 1822, seguindo o I e o II Impérios, e a República, só em agosto de 1982, com a posse da professora Esther de Figueiredo Ferraz como ministra da Educação e Cultura no governo do general João Figueiredo, o último do regime militar, o Brasil nunca tinha tido uma mulher à frente do primeiro time do Executivo. Na política, as mulheres tiveram a primeira participação na Assembleia Constituinte de 1934, com a eleição da deputada Carlota Pereira de Queiroz.

A imposição de cotas, para candidatas e pessoas pretas ou indígenas, ainda não conseguiu preencher as cotas mínimas na Câmara dos Deputados e no Senado. Neste terceiro milênio, avançamos um pouco nas questões de raça e gênero, embora a Lei Maria da Penha tenha sido aprovada em 22 de setembro de 2006, para enquadrar nas penas da Lei homens que agridem e matam suas companheiras (até os anos 80, “a legítima defesa da honra” servia como álibi para muitos trogloditas escaparem das grades). No Supremo Tribunal Federal, só em 2001, tomou posse a primeira ministra, Ellen Gracie. Tivemos a primeira presidente eleita em 2010 e reeleita em 2014, Dilma Roussef, o segundo mandatário apeado do poder em processo de “impeachment”.

O primeiro foi Fernando Collor, que renunciou ao mandato em novembro de 1992, quando o Senado já tinha instaurado o processo de “impeachment”. É interessante notar que Collor disputou a presidência e venceu Lula em 1989, mas só agora, no terceiro governo Lula (o primeiro foi de 2003 a 2006, o segundo, de 2007 a 2010) um caso de assédio entre um ministro e uma ministra (ambos pretos) gera demissão do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvio Almeida, por haver contra ele outras denúncias de assédio. Após ouvir as queixas da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, na quinta-feira, o presidente Lula pressionou seu ministro a pedir demissão no dia seguinte. Ante a reação de Sílvio Almeida, Lula não titubeou e decidiu sua demissão.

Trata-se de medida exemplar, que deve ter um duplo efeito. Entre as mulheres deve ocorrer um encorajamento a levar adiante denúncias contra assediadores (no caso da Lei Maria da Penha, apesar do machismo arraigado no país, já se nota mudança de atitude nas delegacias e na Polícia Militar, para onde se dirigem as agredidas que não precisam do socorro imediato do SAMU). Entre os homens, espera-se que muitos tenham recato e refreiem seus instintos animalescos nos locais de trabalho, e ainda nos apertados transportes públicos, onde ocorrem abusos cotidianos que, não raro, acabam em violência sexual.

Anielle não é Zélia

No governo de Fernando Collor de Mello, há quase 34 anos, veio a público um romance proibido entre duas figuras proeminentes do Ministério, fruto de um assédio – não repelido – do ministro da Justiça, Bernardo Cabral, um homem pelo menos 20 anos mais velho, à então poderosa ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. Embora tivesse comandado a atitude econômica mais drástica da história do país – o confisco dos depósitos e aplicações financeiras acima de R$ 50 mil cruzados novos, que atingiu até a caderneta de poupança –, a paulista Zélia, solteira, era uma mulher frágil e não resistiu aos assédios de um homem casado, o amazonense conhecido como “boto Tucuxi” (no Amazonas, as moças ribeirinhas quando engravidavam e não queriam indicar o pai diziam que foram seduzidas “pelo boto”. Hoje, a seca da bacia do Amazonas está ameaçando a sobrevivência dos botos, mas não se sabe se as moças ficaram mais espertas para repelir assédios indesejáveis). O fato é que na noite em que comemorava seu 37º aniversário, na então badalada Academia de Tênis, a ministra Zélia, à frente de colegas do ministério e jornalistas que convidara, além de alguns políticos, foi tirada para dançar pelo ministro da Justiça.

A música, irresistível, era “Besame Mucho”, que aproximou mais o casal e revelou a todos um segredo de polichinelo. Zélia ficou apaixonada, mas Cabral, que era casado, não queria assumir compromisso (jamais se separou da esposa – Zuleide Cabral). Certa feita, Zélia propôs uma viagem juntos, mas Cabral a deixou plantada, alegando que precisava voltar ao Brasil para fazer tratamento dentário. O fato é que o machismo da época deixou mal apenas Zélia. Cabral estava no papel de macho, diziam muitos.

O que mudou nesses 32 anos foi a consciência da sociedade e a luta das mulheres e pretos e indígenas por seus direitos na sociedade. O presidente Lula (que é corintiano), há dois meses foi recriminado por dizer, ao condenar o tratamento truculento de maridos e companheiros com a esposa ou namorada, que “o cara é corintiano, está com a cabeça quente” – seu time já estava na zona da degola e lá continua. Lula foi recriminado na mídia e pela mulher, Janja da Silva. Por sinal, foi a reação de apoio explícita de Janja, publicando foto em desagravo à Anielle, na noite de quinta-feira, que sedimentou a decisão de Lula para afastar seu ministro. E a demissão foi simbólica. Em nome da Igualdade Racial e de Gêneros, o deslize do assédio está igual ou acima dos Direitos Humanos e da Cidadania. Espera-se que, em caso de suspeitas de corrupção, após investigações e o necessário direito de defesa ao suspeito, a demissão seja igualmente exemplar.

A catilinária de Bolsonaro contra Moraes

Os brasileiros já estão cansados das catilinárias de Jair Bolsonaro contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. O 1º embate ocorreu em abril de 2020, um mês depois da declaração da pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial de Saúde. Diante das recomendações da OMS para isolamento social e uso de máscaras em locais públicos e de grande circulação, os governadores mais conscientes baixaram decretos tornando obrigatório o uso de máscaras e impondo multas a quem não usasse. O então presidente que sempre foi negacionista e propagava que a Covid-19 podia ser enfrentada com comprimidos de cloroquina (condenados como inócuos pela OMS), se insurgiu contra o isolamento (por temer estragos na economia) e o uso de máscaras. Desfilava em motociatas exibindo seu desprezo pelas máscaras (como adiante desprezaria as primeiras mortes – “e daí, não sou coveiro” - e as vacinas) levou a se insurgir contra o decreto do então governador João Dória (PSDB-SP), com quem veio a ter embates contra a vacina do Butantã. Bolsonaro recorreu ao STF contra os decretos dos governadores e prefeitos, e uma decisão do ministro Alexandre de Moraes reconheceu o direito da proibição pelos entes federativos e municipais. Tanto bastou para Alexandre de Moraes entrar na linha de tiro dos inimigos de Bolsonaro. Multado seis vezes pelo governo Dória, Bolsonaro foi indultado em quase R$ 1 milhão pelo seu sucessor, Tarcísio de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro.

No ano seguinte, nas comemorações do 7 de setembro, em São Paulo, Moraes e Dória passaram a ser alvos do presidente nos atos da avenida Paulista. Sempre que tinha oportunidade, o então presidente abria fogo contra Moraes, já então presidindo o inquérito das “fake News” e suas ligações com atos que pregavam ataque ao Supremo Tribunal Federal (nas eleições de 2018, seu filho 03, Eduardo Bolsonaro, proclamou que “para fechar o Supremo basta um jipe e um cabo”). As vozes contra a firmeza de Moraes na defesa da Constituição e dos princípios democráticos e contra a disseminação de boatos e pregações contra o Estado Democrático de Direito criaram um uníssono coro bolsonarista. O ápice foi o desafio do então presidente, em cima de um caminhão de trio elétrico patrocinado pelo pastor Silas Malafaia.

Disse Bolsonaro em tom de desafio: “ou esse ministro se enquadra, ou ele pede para sair”, e afirmou que “não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas, turve a nossa liberdade”. Em seguida, emendou: “Ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade”, completou o então presidente, que encerrou a fala afirmando que não cumpriria mais nenhuma decisão de Moraes: “Digo a vocês que qualquer decisão do ministro Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá”.

Ante a reação quase uníssona da mídia e declarações vigorosas dos ministros do STF (até então, só tinha nomeado Kássio Nunes Marques, em novembro de 2020) e palavras de censura do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, dois dias depois, um Bolsonaro acovardado mandou um avião da FAB a São Paulo buscar o ex-presidente Michel Temer, que havia nomeado Moraes para o STF em 2017, para redigirem uma carta a quatro mãos (a maior parte do texto escorregadio de pedido de desculpas era da lavra de Temer). Pediu desculpas públicas pela “incontinência verbal” no “calor do momento”, e ainda falou ao telefone com o ministro do Supremo, contatado pelo ex-presidente Temer.

Desculpas fingidas, como se veria adiante. Na campanha eleitoral de 2022, quando Moraes assumiu, pelo sistema de rodízio dos ministros do Supremo, a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, ampliando o rigor contra as “fake News” e as manifestações de Bolsonaro & cia para desacreditar as urnas eletrônicas, as diatribes contra Moraes foram num crescendo. Antes, durante (1º e 2º turnos) e após, como se viu nas conspirações contra a diplomação (12 de dezembro) e a posse de Lula e Alkimin - até desaguar no frustrado golpe de 8 de janeiro de 2023. Para azar dos bolsonaristas, o STF estendeu a Moraes o inquérito da conspiração, como desdobramento de todas as ações dos anos de 2020-2021-2022 e 2023. Por isso, os bolsonaristas só vêm uma saída: como não podem “capturar e enforcar o ministro Moraes”, como pregavam os golpistas em dezembro de 2022 e janeiro de 2023, a “nova” velha catilinária é pelo “impeachment” do ministro do Supremo, com abertura de processo no Senado. Vale lembrar que o ex-senador Lasier Martins (Podemos-RS) tentou várias vezes, sem sucesso. Recentemente, capturou um aliado no espaço: o dono da SpaceX e do X (ex-Twitter). Elon Musk inicialmente também disse que não acataria a ordem do Supremo. Depois recuou. Bolsonaro, no 7 de setembro de 2024, evitou escalar ataques diretos. Deixou parte da tarefa aos demais oradores.

A história da catilinária, em Roma

Após a queda do Império Romano, e a criação da República, o Senado passa a ser o centro político de Roma, mas nem por isso as conspirações e assassinatos que marcaram o fim do Império perderam força. Ao contrário. O episódio das “Catilinárias (em latim In Catilinam Orationes Quattuor) é uma série de quatro discursos célebres de Cícero, o cônsul romano Marco Túlio Cícero, pronunciados em 63 a.C. Os discursos são um ato de denúncia contra a conspiração para matá-lo, o que pretendia o senador Lúcio Sérgio Catilina. Quando amigos de Catilina começaram a se sublevar, Cícero - o cônsul escolhido - conseguiu plenos poderes e interpelou Catilina em pleno Senado:

“Qvosque tandem abvtere, Catilina, patientia nostra?” (Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?) (...) Não vês que tua conspiração foi dominada pelos que a conhecem?"

O primeiro e o último destes discursos foram dirigidos ao Senado Romano, os outros dois foram diretamente para o povo romano. Todos compostos para denunciar explicitamente Lúcio Sérgio Catilina no contexto da Segunda Conspiração Catilinária.

Falido financeiramente, Catilina, filho de família nobre, juntamente com seus seguidores subversivos, planejava derrubar o governo republicano para obter riquezas e poder (quem sabe das arábias?). Mas, após o confronto aberto por Cícero no Senado, Catilina resolveu afastar-se do Senado, indo juntar-se a seu exército ilícito para armar a defesa. Segundo registros históricos, após o quarto discurso, Catilina estava condenado à morte, mas recusou-se a entregar-se e foi morto em um campo de batalha no ano seguinte. Os conspiradores foram presos e condenados à morte. A condenação foi posteriormente criticada como violação da lei, pois o Senado romano não tinha o poder de vida e morte sobre o cidadão romano.

Qualquer semelhança com fatos recentes é mera coincidência, pois a história só se repete como farsa.

As catilinárias de Maduro

Se não bastassem as catilinárias de Bolsonaro, Malafaia e Cia, o Brasil está sendo arrastado a uma crise causada pelas catilinárias de Nicolás Maduro, ditador da Venezuela. Após se declarar vencedor (sem apresentar as atas de votação de 28 de julho) para um novo mandato de sete Anos, o presidente venezuelano – cuja eleição não foi reconhecida pelos Estados Unidos, países da União Europeia, pelo México, pelos vizinhos Brasil e Colômbia e ainda pelo Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Peru, resolveu expulsar o embaixador e todos os diplomatas da Embaixada da Argentina.

O governo de Javier Milei, mesmo politicamente afastado do presidente Lula, solicitou, pelas vias diplomáticas, que o Brasil assumisse a custódia da Embaixada Argentina. De pronto, o Brasil acolheu o pedido, baseado na amizade centenária entre as duas nações, e hasteou no local a bandeira brasileira – ato que equivale a estender a soberania brasileira ao território da embaixada de nosso vizinho do Sul.

Mas na escalada de perseguição pelo vizinho do Norte aos oposicionistas – seis deles estariam refugiados, pedindo “asilo” na Embaixada da Argentina, sob guarda brasileira -, o governo venezuelano decidiu, sexta-feira, revogar "de maneira imediata" a autorização para que a Embaixada tenha custódia do Brasil no país. Como o ato foi feito de forma “unilateral”, ao arrepio das normas diplomáticas, o Brasil deve continuar tomando conta da Embaixada "até que outro país assuma" a responsabilidade. Para tornar mais difícil a vida dos que pediram asilo, o governo venezuelano, além de cercar o local com tropas, cortou o abastecimento de energia e água ao prédio da embaixada.

Vale lembrar que nem no episódio de invasão pelos guardas revolucionários do Irã da Embaixada dos Estados Unidos em Teerã, em novembro de 1979, o território deixou de ser protegido pelo governo dos aiatolás. O filme “Fargo” romanceia bem a situação do resgate de 52 reféns, por uma falsa equipe de filmagem que era integrada por espiões e marines americanos.

Agora, uma eventual entrada das forças de segurança venezuelanas na embaixada, mesmo que sob custódia de outro país, configuraria uma violação da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, que prevê a inviolabilidade de instalações diplomáticas, incluindo embaixadas, consulados e residências de embaixadores. Por isso, se a Venezuela quiser o Brasil fora da representação argentina (e evitar uma escalada diplomática com um dos poucos países latino-americanos, que tenta uma saída democrática para o “imbróglio” atual - outra nação terá que assumir a custódia do local. Mas, no próprio sábado, o Brasil reafirmou que continuará à frente da Embaixada. Ou seja, Brasil não vai abdicar da sua soberania em defesa da Democracia.

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