
Por Coisas da Política
WILSON CID - wilson.cid@hotmail.com
COISAS DA POLÍTICA
As lições da travessia
Publicado em 22/04/2025 às 11:01
Alterado em 23/04/2025 às 13:50

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Ontem, quando se passaram 40 anos da morte de Tancredo de Almeida Neves, foram muitas as relembranças sobre sua intimidade com a história política do Brasil, onde figurou, simultaneamente, como agente privilegiado ou espectador nos momentos graves. De forma que, no curso de meio século acidentado, poucas águas correram neste país sem que por elas não tenha velejado. Fossem agora menos tensos os dias que correm, com vagar para avaliar e apreender lições passadas, talvez seriam mais profundos os estudos sobre esse mineiro ilustre, colecionador de mandatos parlamentares, que, desempenhados com sabedoria, haveriam de consagrá-lo como exímio articulador, dono de imensa competência para superar problemas e divergências no campo das instituições. E com o mínimo possível de incidentes, como se deu – muitos ainda recordam – na engenharia política que desenvolveu para a retomada da democracia, depois de vinte anos de ditadura, sem que para tanto fosse necessário o enfrentamento das armas, algo que a maioria dos povos não teria conseguido. Soube remover velhos rancores, juntou os contrários para chegar ao propósito comum de 1985, fazendo que se sentassem à mesa, lado a lado, pacifistas, radicais de direita e de esquerda e líderes de segmentos sociais diversos. Fez-se a transição, sua maior obra, condenada a subir a rampa do Planalto sem ele, que só a escalou deitado em silencioso féretro.
Resta algo a estudar na biografia tancrediana, certas sutilezas, como a contingência de abraçar publicamente a bandeira das Diretas Já, campanha que dominava totalmente a emoção das ruas, e ao mesmo tempo articular nos bastidores o colégio eleitoral, porque só ali teria como vencer Ulysses Guimarães, inconteste líder da oposição ao regime, pronto para ser presidente. Mais que isso, fez com que Ulysses cedesse ao bruxo indomável da hora, e advogasse a causa maior.
Assim, abriu-se caminho para a passagem, a páscoa da democracia. Travessia. Aquele colégio, formado por deputados, senadores e seis delegados de cada Assembleia Legislativa, foi palco e capítulo final de uma exuberante jornada de composições políticas, como nunca fora visto e nunca mais se viu, além de conversas tranquilizadoras junto aos gabinetes castrenses mais temerosos. Parecia que Tancredo não saíra das montanhas, mas da corte de um Luís XIV, como fidalgo com lenço de renda nos punhos… Irresistível.
Muito ainda precisamos saber sobre aquelas manobras, como também a custosa aritmética dos votos – 480 contra 180 – generosos mas suados na disputa com Paulo Maluf, seu adversário, além de ter superado a hostilidade do PT, que boicotou o colégio. Há, pois, nuances a pesquisar e registrar, além das que já guardamos na memória. Por falar nelas, conveniente também ouvir depoimento do jornalista Mauro Santayana, a quem coube a responsabilidade de escrever os discursos mais importantes que Tancredo pronunciou.
Quatro décadas são tempo ideal para traçar o perfil de um político influente. Jazem as divergências e ressentimentos, e a própria história cuidou de exumar, de suas entranhas, outros velhos rancores, que hoje nada mais são que recordações só lembradas para retaliações.
(Em tudo, o peculiar jeito de Tancredo na hora de lidar com situações confusas. Contava-se, em Minas, à sombra daquelas montanhas de ferro, que o raciocínio dele se aprofundava no momento em que economizava palavras, e passava a esfregar a gravata na ponta do nariz, mania que vinha dos tempos em que advogava no fórum de São João Del Rei).
Oportuno também seria considerar um detalhe que, lamentavelmente, tem passado à margem da pauta dos historiadores. É a presença dele como primeiro-ministro na brevíssima experiência do parlamentarismo mais ou menos híbrido de 1961. Não por ter assumido a missão de instalar o Gabinete, avesso a um sentimento francamente simpático ao presidencialismo, logo confirmado em plebiscito que não deixou dúvidas quanto à preferência popular. O que precisamos estudar, analisar com interesse, é que ele trabalhava para mostrar que João Goulart podia ter à mão os principais poderes como presidente, sem temer o parlamentarismo como garote ou feitor escravagista. Estava a caminho de convencê-lo. O presidente poderia governar sem temer o estorvo do primeiro-ministro, sendo Tancredo ou os que haveriam de sucedê-lo, Brochado da Rocha e Hermes Lima. Pode ser que alguém desconfie da importância desse detalhe, mas não se deve desconsiderar que, sobrevivente o parlamentarismo em paz, dificilmente teríamos a tragédia de 64. O Gabinete, bem ao estilo do parlamentar mineiro, tinha tudo para administrar dois fenômenos que foram decisivos para a ruptura da democracia naquele ano: os temores dos militares, inflados pelos Estados Unidos, que viam o comunismo prosperando; e, ao mesmo tempo, as reformas de base, propostas com atropelos e descuidos políticos, acossando e desafiando velhas estruturas da sociedade.
Estudemos mais o fenômeno Tancredo e as lições que deixou da transição para a democracia.