A natureza do pleito
A transferência de votos de Lula para Fernando Haddad está em pleno movimento. Se ele mantiver o ritmo de crescimento apresentado nos primeiros quatro dias de campanha, de quatro pontos percentuais segundo o Datafolha, em breve poderá isolar-se no segundo lugar. Nisso acreditam até os analistas do mercado. Se estas previsões se confirmarem, podemos ter no segundo turno mais uma eleição plebiscitária, um confronto entre o PT e o antipetismo, antes encarnado pelo PSDB, que perdeu o papel para Bolsonaro. Resumidamente, entre os que venceram em 2016 e os que foram derrubados.
Mais do que uma disputa entre esquerda e direita (no caso uma direita extremada e tosca), o segundo turno pode tomar a forma de um acerto de contas sobre o que se passou no Brasil nos últimos anos. De um lado, os que enxergam o capeta no PT, embora sabendo que a corrupção não é monopólio petista; os que aplaudiram a derrubada de Dilma com um crime de responsabilidade forçado; os que aplaudiram a prisão de Lula e sua inabilitação eleitoral, apesar das anomalias dos processos. Estes poderão votar em Alckmin, Meirelles, Amoedo, Álvaro Dias ou Bolsonaro. Mas votarão, majoritariamente, em Bolsonaro, levando-o ao segundo turno.
De outro lado, votarão majoritariamente em Haddad os que viram um golpe no impeachment, acham a prisão de Lula injusta e destinada a impedir sua candidatura e, diante da crise que se agravou sob Temer, querem de volta as políticas petistas. Darão na urna a resposta que não deram nas ruas, ou porque estavam envergonhados com a corrupção nos governos petistas, ou porque acreditaram mesmo que tudo poderia melhorar com o “Fora PT”. E também porque os mais pobres não se sentem donos das ruas como a classe média.
Haddad e Ciro estão empatados, mas o petista tem a enorme vantagem de ser “o candidato de Lula”, também chamado de Andrade e de Adauto. Nos quatro dias em que fez campanha, ele falou o nome de Lula em cada frase, definiu-se como mero substituto, prometeu a volta dos bons tempos e evocou as “perseguições” ao partido e ao ex-presidente, bem como a sabotagem parlamentar que ajudou a afundar o governo Dilma. É a sua narrativa. Cabe aos adversários contestá-la. No horário eleitoral, trechos da carta de Lula continuarão sendo lidos e dramatizados.
O discurso de Ciro, de que o PT estava levando o país para a beira do abismo (representado por Bolsonaro), deixará de fazer sentido. Poderá ele, no máximo, dizer que tem mais chances de vencer Bolsonaro no segundo turno. Assim como Alckmin alega ter mais chances de derrotar o PT. Na simulação de segundo turno do Datafolha, Ciro ganha de 45% a 38% de Bolsonaro, e Haddad perde de 41% a 40%. Mas é cedo para tomar este empate técnico como tendência.
Ciro também se opôs ao “golpe” e tem sido mais crítico de Temer que o PT. Não teve o apoio do PT porque Lula, para sua estratégia, precisava de um petista que se submetesse até mesmo ao timing do lançamento tardio da candidatura, que a tantos pareceu loucura. Foi se mantendo candidato, apesar da impugnação certa, que preservou unido o eleitorado que agora tenta transferir para Haddad. Nem Ciro nem qualquer aliado de outro partido teria feito este jogo, ou abdicaria do protagonismo para se declarar substituto.
Contra a percepção de uma eleição plebiscitária, entre o PT e o antipetismo, pode se alegar que Bolsonaro foi ator secundário nos processos que levaram aos infortúnios petistas. No impeachment, seu feito maior foi dedicar o voto ao torturador Brilhante Ulstra. Na linha de frente estavam o MDB e a turma de Temer e o PSDB liderado por Aécio. O Centrão aderiu depois, quando Dilma já estava perdida, após o Judiciário impedir Lula de se tornar ministro para articular a reação política. Mas, na ausência de candidato competitivo destas forças vitoriosas em 2016, foi Bolsonaro que assumiu a “persona” do anti-PT. Com ele será o duelo.