Governo errante

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Com recuos e declarações contraditórias, a cada dia como presidente eleito Jair Bolsonaro faz aumentar as dúvidas sobre o que de fato pensa acerca de questões fundamentais e sobre como vai realmente governar o Brasil. A maior delas é sobre como será construída a governabilidade, a maioria parlamentar, tendo o PSL conquistado apenas 10% das cadeiras na Câmara. O futuro superministro Paulo Guedes defendeu ontem “uma prensa” no atual Congresso para aprovar a reforma previdenciária de Temer ainda este ano. A reação dos parlamentares foi a pior possível. Imprensar o Congresso nunca deu bom resultado, em lugar algum.

O recuo de ontem foi sobre a intenção de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, afrontando a Palestina e o mundo árabe. Primeiramente ele interrompeu uma entrevista para não responder perguntas sobre a decisão claramente retaliadora do Egito, que cancelou a visita de uma missão comercial brasileira. Mais tarde, após visitar o comandante da Marinha, declarou que a transferência ainda não estava decidida e que o Egito não devia reagir a algo que ainda não aconteceu. Que aprenda a lição: política externa é assunto sensível demais para ser tratado pelo Twitter. Para evitar mais danos ao país, ele precisa escolher logo seu futuro chanceler ou buscar um assessor qualificado.

Bolsonaro fez ontem uma espécie de juramento constitucional antecipado ao participar, no Congresso, de sessão solene pelos 30 anos de promulgação da Carta de 1988. Na fala em que invocou Deus cinco vezes, afirmou que “na democracia só há um norte, o da nossa Constituição”. Sentou-se ao lado dos caciques da “velha política” que renegou na campanha, como Temer, Eunício Oliveira e Rodrigo Maia. Cochichou muito com o presidente do STF, Dias Toffoli, mas não escondeu o desagrado com a fala da procuradora-geral Raquel Dodge. “Não basta reverenciar a Constituição, é preciso cumpri-la”, disse ela. Em espantoso desapreço pela liturgia do cargo que ocupará, repetiu o gesto de atirar com duas armas, marca de campanha.

A passagem pelo Congresso nada esclareceu sobre como será o relacionamento entre os dois Poderes. A “prensa” defendida por Guedes foi amplamente repelida. “O momento exige é diálogo, mas com prensa ou sem prensa, acho muito difícil”, disse, por exemplo, o tucano Tasso Jereissati, que tem boas chances de vir a presidir o Senado. Se insistir na votação da reforma previdenciária por um Congresso com a legitimidade vencida, Bolsonaro pode sofrer a primeira derrota antes da posse.

Formar uma coalizão partidária, como fizeram todos os governos pós-1988, é um caminho que Bolsonaro não quer tomar. Seria a negação da promessa de campanha de acabar com o “toma lá, dá cá”, reducionismo que busca desqualificar o regime de coalizões, em que os partidos aliados compartilham o governo. Ele tem dito que buscará a maioria em negociações diretas com os parlamentares e com as bancadas temáticas. Fico imaginando como seria a chamada de votação pela Mesa: “Como vota a bancada ruralista?”. Isso não funciona. O Congresso é organizado para funcionar com partidos. Outro caminho é o do terrorismo digital, sutilmente anunciado pelo filho e deputado eleito Eduardo Bolsonaro: instigar a população, através das redes digitais, contra os deputados que resistirem às proposições do pai. Pode até funcionar com matérias de apelo popular, como a liberação de armas. Não com uma reforma previdenciária, rejeitada pela maioria da população. Pelo menos na transição, o que se desenha é um governo errante.

Inaceitável

O bom senso realmente evaporou. As duas vinhetas que o SBT está exibindo para celebrar a eleição de Bolsonaro são inaceitáveis pelo Brasil democrático. Uma ressuscita a música “Pra frente Brasil” e outra o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, peças do período Médici, o mais tenebroso da ditadura. Havia tortura, as prisões estavam cheias e os exilados eram centenas. Bolsonaro também prometeu prender ou exilar adversários.