O diabo mora nos detalhes
O grande déficit previdenciário, previsto em R$ 305,6 bilhões este ano (sem contar estados e municípios), não está no INSS, que envolve mais de 30 milhões de contribuintes. O impacto maior da longevidade nas contas está na fatia dos funcionários públicos da União (que inclui os do Judiciário e os políticos e funcionários da Câmara e Senado), além dos militares. Em termos absolutos o rombo da fatia do INSS é maior, devendo chegar a R$ 218 bilhões no Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Mas um privilegiado grupo de um milhão de funcionários públicos deve gerar déficit de R$ 44,3 bilhões. Já a fatia dos 60 mil militares, do contingente total de 220 soldados, incluindo os que passam pelo obsoleto alistamento militar (arquivado na Europa, onde as forças são de soldados profissionais) deve gerar déficit de R$ 43,3 bilhões este ano.
Detalhe, o déficit não é causado pelos que descontam, mensalmente, uma fatia dos seus proventos para garantir a aposentadoria futura. Mas pelos funcionários públicos e os militares que já estão aposentados e cujas despesas não podem ser bancadas pelas contribuições dos que estão na ativa, visando a garantia da aposentadoria futura.
O déficit de um milhão de funcionários civis e militares é bem mais pesado do que dos 30,2 milhões de contribuintes do INSS, vis à vis aposentados e pensionistas dos regimes. Militares, promotores, juízes, desembargadores, políticos e altos funcionários da Receita ou da PF, costumam arrotar o seguinte: "Mas nós contribuímos alto para a Previdência".
Verdade. Desde 2013 descontam até 11% do salário e a nova proposta da reforma da Previdência prevê recolhimentos de 7,5%, para os barnabés, que ganham um salário mínimo, com escalada semelhante à da tabela do IR até 16,79% para quem ganha R$ 39 mil (o teto do funcionalismo, após reajuste de 16,3% para os ministros do Supremo Tribunal Federal, no final do governo Temer, elevar o teto a R$ 39,3 mil mensais).
Mas a questão é muito simples. Militar ou funcionário público descontava (digamos, 11% do salário, ou mais nos militares) desde 2013. Mas se veio recebendo promoções, é óbvio que não houve formação de pecúlio suficiente (não há contas individuais nem no RGPS nem no RPSP, ou nos militares) para sustentar aposentadorias futuras pelo último salário da carreira. Essa é a maior aberração que desequilibra fortemente as contas dos servidores civis e militares.
No INSS, aposenta-se, após cumprir prazos de recolhimento ou idade mínima, com o salário achatado pela média das contribuições anteriores. E olha que há a contribuição do empregado e do empregador. "Ah", dirão os funcionários públicos, "nosso rombo ocorre porque a União nunca integralizou a sua parte, como 'nosso patrão'... É meia verdade. O rombo advém do descasamento dos descontos na escalada na carreira civil ou militar frente ao último salário. Imagine-se um alto funcionário do Judiciário. Na média, contribuiu com proventos de promotor. Não pode ser aposentado com o salário de desembargador ou juiz do STJ ou do STF (que me perdoem suas excelências).
O raciocínio vale para os militares. Um General, Brigadeiro ou Almirante, certamente, contribuiu, na média, como tenente-coronel, capitão ou major-brigadeiro. Não pelo último salário da ativa. Faça exercício com sua caderneta de poupança nos últimos 10 anos. Separe anualmente 10% do seu salário. É possível, mesmo com a correção dos rendimentos, bancar o último salário? Não. Isso deveria ser a base da batalha da Previdência.
Mas o diabo mora nos detalhes e cria resistências na largada. Para que tirar o FTGS do aposentado que voltou a trabalhar? Para que reduzir o abono do PIS e o Benefício de Prestação Continuada, de deficientes e idosos a partir dos 60 anos para R$ 400, passando a um salário só aos 70 anos? Como exigir muito do trabalhador rural? Bode na sala, para tirar depois, ou dar argumentos para os altos funcionários defenderem seus privilégios posando de defensores dos mais fracos e oprimidos?